1 de novembro de 2018

Cadete: ides comandar, aprendei a obedecer

O "mau exemplo" do Exército tornou-se presidente

Marcelo Pimentel Jorge de Souza

Folha de S.Paulo

O então candidato Jair Bolsonaro, após votar em um colégio militar no Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress

Passei quatro anos de minha juventude lendo diariamente esta frase, escrita no pátio de formaturas da Academia Militar das Agulhas Negras (Aman): "Cadete: ides comandar, aprendei a obedecer." Inaugurada em 1944, a escola saiu do Rio de Janeiro, então capital, para evitar que cadetes continuassem imersos na efervescência política da República Velha e dos conturbados anos 30.

"Discípulos" de Caxias, o "pacificador", tínhamos ciência do significado daquela frase, pois estávamos sendo forjados chefes militares para obedecer e emitir ordens tecnicamente corretas, moralmente aceitáveis e eticamente justas "“ sempre legais.

Para comandar, também pelo exemplo, teríamos que aprender a obedecer, pois o disciplinado de então seria o disciplinador de sempre, numa estrutura rigidamente hierarquizada como a militar. Chama-se a isso de "hierarquia e disciplina", princípios das Forças Armadas consagrados no artigo 142 da atual Constituição.

Por isso, soou-me muito estranho ao ler, nas páginas de revista de grande circulação em 1986, a carta de um capitão, chamado Bolsonaro, reclamando de soldo e fazendo críticas à política salarial do governo Sarney, apenas um ano após o término de longevo regime militar.

Sabíamos que militares na ativa não deviam manifestar-se daquele modo, sem autorização de seus superiores, por lógica muito simples: se capitão fazia, qualquer outro militar, de soldado a general, também poderia fazer o mesmo.

No ano seguinte àquela primeira desobediência, o mesmo oficial protagonizou outros atos de indisciplina, não somente em relação a salários, mas também por discordar de temas da política nacional.

Submetido a diversos procedimentos de natureza judicial, era considerado péssimo exemplo em quase todo o Exército e sua atitude inspirara outras ações preocupantes, como no caso de um capitão em Apucarana (PR) que resolvera comandar sua tropa em invasão à prefeitura para reclamar de soldos.

Sua saída do Exército para a política, ao ser eleito vereador em 1988, teve distintos significados. Para o então comando dessa Força, um alívio, porque se livrava de um "mau exemplo", que, seguido, poderia comprometer o processo de redemocratização; para alguns colegas do capitão, especialmente os que se engajaram na "luta salarial", significou uma espécie de traição, pois ficaram sujeitos a incerto futuro profissional; para os "de juízo", serviu como claro aviso de que deveriam ficar distantes dele, se quisessem prosseguir com êxito em suas carreiras.

Para o próprio capitão, uma oportunidade de somar aposentadoria integral (com apenas 16 anos de serviço) à renda considerável de uma nova profissão, na política, que lhe daria o conforto financeiro e a projeção pelos quais tanto ansiava.

Para mim, tenente àquela época, o significado foi mais singelo: não se adaptara à carreira, faltando-lhe a compreensão do essencial na profissão militar --o respeito incondicional à "hierarquia e disciplina".

Hoje, coronel na reserva, estou preocupado porque o "mau exemplo" de outrora é, agora, presidente da República e chegou ao cargo em grande medida pela indevida associação eleitoral de sua figura aos valores das Forças Armadas. Minha preocupação não é só porque o considero extremamente despreparado para a função. O desobediente capitão será, a partir de janeiro, o comandante em chefe das Forças Armadas e jurará obedecer à Constituição.

Minha maior preocupação é que não tenha compreendido, até hoje, o significado daquela frase que emoldura o pátio da Aman: "Cadete, ides comandar, aprendei a obedecer". Espero que eu esteja errado.

Sobre o autor

Coronel de Artilharia (reserva) do Exército e mestre em ciências militares pela Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme)

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