31 de outubro de 2015

Como não elidir a questão de classe

Reprodução social do trabalho e a classe trabalhadora global

Tithi Bhattacharya

Viewpoint

"...a força de trabalho é uma mercadoria que o seu dono, o trabalhador assalariado, vende ao capitalista. Por que a vende ele? É para viver". 
- Karl Marx, Trabalho assalariado e capital


Tradução / Desde a sua própria formação, mas particularmente desde o final do século XX, a classe trabalhadora global tem enfrentado um tremendo desafio - como superar todas as suas divisões para aparecer em boa ordem e em plena forma combativa para derrubar o capitalismo. Depois de as lutas globais da classe trabalhadora não terem conseguido superar este desafio, a própria classe trabalhadora se tornou objeto de um vasto leque de condenações teóricas e práticas. Na maioria das vezes, essas condenações assumem a forma de declarações ou previsões sobre a morte da classe trabalhadora ou, simplesmente, argumentações no sentido de que a classe trabalhadora não é mais um agente válido de mudança. Outros candidatos - mulheres, minorias raciais/étnicas, novos movimentos sociais, um "povo" amorfo, mas insurgente, comunidade, para citar apenas alguns - são todos apontados como possíveis alternativas a essa suposta categoria moribunda/reformista ou masculinista e economista, a classe trabalhadora.

O que muitas dessas condenações têm em comum é um mal-entendido bastante espalhado sobre o que realmente é a classe trabalhadora. Em vez da complexa compreensão de classe historicamente proposta pela teoria marxista, que revela uma visão do poder insurgente da classe trabalhadora, capaz de transcender categorias seccionais, os críticos de hoje confiam numa visão muito estreita de uma "classe trabalhadora" em que um trabalhador é simplesmente uma pessoa que tem um tipo específico de emprego.

Neste ensaio, vou refutar essa concepção espúria de classe, reativando as perceções marxistas fundamentais sobre a formação de classe, que foram obscurecidas por quatro décadas de neoliberalismo e pelas muitas derrotas da classe trabalhadora global. Como vou argumentar, a chave para desenvolver uma compreensão suficientemente dinâmica da classe trabalhadora, é o quadro da reprodução social. Ao pensar sobre a classe trabalhadora, é essencial reconhecer que os trabalhadores têm uma existência para além do local de trabalho. O desafio teórico reside, portanto, em compreender a relação entre essa existência e a das suas vidas produtivas sob a dominação direta do capitalista. A relação entre essas duas esferas, por sua vez, nos ajudará a considerar direções estratégicas para a luta de classes.

Mas antes de chegarmos lá, precisamos começar desde o início, ou seja, a partir da crítica de Karl Marx à Economia Política, uma vez que as raízes da atual conceção limitada da classe trabalhadora derivam, em grande parte, de uma compreensão igualmente limitada da própria economia.

A economia

As alegações de que o marxismo é redutor ou economicista só fazem sentido se lermos a economia como forças neutras de mercado determinando o destino dos humanos por acaso; ou no sentido de um burocrata sindicalista cuja compreensão do trabalhador é restrita ao assalariado. Vejamos primeiro porque é que esta visão restritiva do "económico" é algo que Marx frequentemente critica.

A contribuição de Marx para a teoria social não foi simplesmente apontar para a base histórico-materialista da vida social, mas propor que, a fim de chegar a essa base materialista, o materialista histórico deve primeiro entender que a realidade não é como ela aparece [1].

A "economia", tal como nos parece, é a esfera em que fazemos um trabalho honesto e somos pagos por isso. Alguns salários puderam ser baixos, outros elevados. Mas o princípio que estrutura esta "economia" é que o capitalista e o trabalhador são seres iguais que se envolvem numa transação igual: o trabalho do trabalhador por um salário do patrão.

De acordo com Marx, no entanto, esta esfera é "de facto, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Só aí governam Liberdade, Igualdade, Propriedade e Bentham”. Neste único golpe, Marx abala a nossa fé nos pilares fundamentais da sociedade moderna: nossos direitos jurídicos. Marx não está a sugerir que os direitos jurídicos que temos como sujeitos iguais são inexistentes ou fictícios, mas que tais direitos estão ancorados nas relações de mercado. As transações entre trabalhadores e capitalistas tomam a forma - na medida em que são consideradas puramente do ponto de vista da troca de mercado - de troca entre iguais legais. Marx não está argumentando que não existem direitos jurídicos, mas que eles mascaram a realidade da exploração.

Se aquilo que comumente entendemos por "economia" é, pois, meramente superficial, que segredo é esse que o capital conseguiu esconder de nós? Que a sua força animadora é o trabalho humano.

Assim que nós, seguindo Marx, restaurarmos o trabalho como fonte de valor sob o capitalismo e como expressão da própria vida social da humanidade, restauramos ao processo "económico" o seu componente desordenado, sensitivo, marcado pelo género e pela “raça”, e desregrado: seres humanos vivos, capazes de seguir ordens - assim como de as desprezar.

O econômico como relação social

Concentrar-se "economia" de superfície (do mercado) como se esta fosse a única realidade é obscurecer dois processos relacionados:

  1. a separação entre o "político" e o "económico" que é exclusivo do capitalismo; e
  2. o atual processo de dominação/expropriação que acontece para além da esfera da troca "igual".

O primeiro processo assegura que os atos de apropriação pelo capitalista apareçam completamente camuflados em traje económico, inseparáveis do próprio processo de produção. Como explicou Ellen Meiksins Wood: "Assim... enquanto os antigos produtores [pré-capitalistas] poderiam ver-se a si próprios como lutando para manter o que era seu por direito, a estrutura do capitalismo incentiva os trabalhadores a se aperceberem como lutando para obter uma parcela daquilo que pertence ao capital, um 'salário justo', em troca de seu trabalho” (2). Uma vez que este processo torna invisível o ato de exploração, o trabalhador é apanhado nesta esfera de "igualdade" jurídica, negociando em vez de questionar a forma salarial.

No entanto, é o segundo processo invisível que forma o eixo central da vida social. Quando deixamos a esfera benthamita da igualdade jurídica e nos dirigimos ao que Marx chama de "morada oculta da produção":

Aquele que antes aparecia como o dono do dinheiro, agora surge à nossa frente como capitalista; o possuidor da força de trabalho segue-o como seu operário. Um com um ar de importância, sorridente, atento aos negócios; o outro, tímido e reservado, como quem traz ao mercado a sua própria pele e não tem nada a esperar senão um escaldão (3).

Marx enfatiza aqui o oposto do "economismo" ou do "livre comércio vulgaris", como ele o chama. Ele nos convida a ver o "económico" como uma relação social: uma relação que envolve dominação e coerção, mesmo que as formas jurídicas e as instituições políticas procurem obscurecer isso.

Façamos aqui uma pausa para reiterar as três afirmações fundamentais feitas até agora sobre a economia. Primeiro, que a economia tal como a vemos é, segundo Marx, uma aparência superficial; segundo, que essa aparência, impregnada de uma retórica de igualdade e liberdade, esconde uma "morada oculta" onde reina a dominação/coerção e que essas relações formam o eixo central do capitalismo; portanto, terceiro, que o económico é também uma relação social, na medida em que o poder que é necessário para administrar essa morada oculta - submeter o trabalhador a modos de dominação - é também, necessariamente, um poder político.

O objetivo dessa coerção e dominação, e o cerne da economia capitalista considerada como uma relação social, é fazer com que o trabalhador produza mais do que o valor da sua força de trabalho. "O valor da força de trabalho", diz-nos Marx, "é o valor dos meios de subsistência necessários para a manutenção do seu proprietário [i.e., o trabalhador]” (4). O valor adicional que ela produz durante a jornada de trabalho é apropriado pelo capital como mais-valia. A forma salário não é nada mais do que o valor necessário para reproduzir a força de trabalho do trabalhador.

Para explicar como ocorre esse roubo todos os dias, Marx nos introduz aos conceitos de tempo de trabalho necessário e excedente. O tempo de trabalho necessário é aquela porção da jornada de trabalho em que o produtor direto, o nosso trabalhador, produz valor equivalente ao que é necessário para a sua própria reprodução; o tempo de trabalho excedente é todo o restante da jornada de trabalho, em que ele/a produz valor adicional para o capital.

Este conjunto de categorias conceituais que Marx propõe aqui forma aquilo que é mais geralmente conhecido como a teoria do valor do trabalho. Nesse conjunto, duas categorias centrais, que devemos particularmente atender, são (a) a própria força de trabalho: sua composição, desenvolvimento, reprodução e substituição final; e (b) o espaço de trabalho, ou seja, a questão do trabalho no ponto de produção.

A força de trabalho: a "mercadoria singular" e a sua reprodução social

Marx introduz o conceito de força de trabalho com grande deliberação. A força de trabalho, no sentido de Marx, é a nossa capacidade de trabalhar. "Queremos dizer por força de trabalho ou capacidade de trabalho", explica Marx, "o agregado das capacidades mentais e físicas existentes na forma física, a personalidade viva, de um ser humano, capacidades que ele coloca em movimento sempre que produz um valor de uso de qualquer tipo" (5). Obviamente, a capacidade de trabalho é uma qualidade trans-histórica que os seres humanos possuem, independentemente da formação social de que fazem parte. O que é específico do capitalismo, no entanto, é que somente sob este sistema de produção, a produção de mercadorias se generaliza em toda a sociedade e o trabalho mercantilizado, disponível para venda no mercado, se torna o modo dominante de exploração (6). Assim, sob o capitalismo, o que é generalizado na forma de mercadoria é uma capacidade humana. Em várias passagens, Marx refere-se a isso com a selvageria que uma tal mutilação do eu merece: "O detentor da força de trabalho, em vez de poder vender mercadorias nas quais o seu trabalho fosse objetivado, deve antes ser obrigado a vender como mercadoria aquela mesma força de trabalho que só existe no seu corpo vivo (7).

Além disso, só se pode falar de força de trabalho quando o trabalhador utiliza essa capacidade, ou seja, "ela só se torna realidade quando se expressa; é ativada somente através do trabalho" (8). Assim, como a força de trabalho é gasta no processo de produção de outras mercadorias, assim "uma quantidade definida de músculo humano, nervo, cérebro, etc.", o composto bruto da força de trabalho, "é gasta, e estas coisas têm de ser substituídas" (9).

Como pode a força de trabalho ser restaurada? Marx é ambíguo sobre este ponto:

Se o dono da força de trabalho trabalha hoje, amanhã deve poder repetir o mesmo processo, nas mesmas condições de saúde e força. Os seus meios de subsistência devem, portanto, ser suficientes para o manter no seu estado normal de indivíduo trabalhador. As suas necessidades naturais, como alimentação, vestuário, combustível e alojamento, variam de acordo com o clima e outras peculiaridades físicas do seu país. Por outro lado, o número e a extensão dos seus chamados requisitos necessários, bem como a forma como são satisfeitos, são eles próprios produto da história e dependem, portanto, em grande medida, do nível de civilização atingido por um país; em particular, dependem das condições em que - e, consequentemente, dos hábitos e expectativas com que - foi formada a classe de trabalhadores livres (10).

Aqui vacilamos e sentimos que o conteúdo da crítica de Marx é inadequado à sua forma. Há várias questões que a passagem acima citada provoca e depois deixa sem resposta.

Marxistas e feministas proponentes da chamada teoria da reprodução social, como Lise Vogel, têm chamado a atenção para a "produção" dos seres humanos, neste caso, o trabalhador, que se dá fora do local de produção das mercadorias. Os teóricos da reprodução social querem, com razão, desenvolver um pouco mais o que Marx deixa por examinar. Ou seja, quais são as implicações de a força de trabalho ser produzida fora do circuito de produção de mercadorias, mas ser essencial para esta? O local historicamente mais duradouro para a reprodução da força de trabalho é, naturalmente, a unidade baseada no parentesco a que chamamos família. Ela desempenha um papel fundamental na reprodução biológica - como a substituição geracional da classe trabalhadora - e na reprodução do próprio trabalhador, através da alimentação, do abrigo e do cuidado psíquico, de forma a este esteja preparado para o próximo dia de trabalho. Ambas essas funções são desproporcionalmente assumidas pelas mulheres sob o capitalismo e são as fontes de opressão das mulheres sob este sistema (11).

Mas a passagem acima citada precisa de desenvolvimento em outros aspetos também. A força de trabalho, por exemplo, como Vogel apontou, não é simplesmente reabastecida em casa, nem é sempre reproduzida de geração em geração. A família pode formar o local de renovação individual da força de trabalho, mas isso por si só não explica "as condições em que, e... os hábitos e grau de conforto em que", a classe trabalhadora de qualquer sociedade em particular foi produzida. Que outras relações e instituições sociais são abrangidas pelo circuito da reprodução social? A educação pública e os sistemas de saúde, as instalações de lazer da comunidade, as pensões e os benefícios para os idosos, todos compõem juntos aqueles "hábitos" historicamente determinados. Da mesma forma, a substituição geracional através do parto na unidade familiar, embora dominante, não é a única forma de substituir a força de trabalho. A escravatura e a imigração são duas das formas mais comuns pelas quais o capital substituiu o trabalho dentro das fronteiras nacionais.

Relativamente, vamos supor que uma certa cesta de bens (x) é necessária para "reproduzir" um determinado trabalhador. Essa "cesta de bens" contendo alimentos, abrigo, educação, saúde, e assim por diante, são então consumidos por essa mítica (ou alguns diriam universal) trabalhadora para se reproduzir a si própria. Mas será que o tamanho e o conteúdo dos bens do cesto não variam em função da raça, nacionalidade e género do trabalhador? Marx parecia pensar assim. Considere a sua discussão sobre o trabalhador irlandês e suas "necessidades" em comparação com outros trabalhadores. Se os trabalhadores baixassem seu consumo (a fim de economizar), argumenta Marx, então eles "inevitavelmente se degradariam... [a eles próprios] ao nível dos irlandeses, a esse nível de trabalhadores assalariados onde as absolutamente mínimas necessidades e meios animais de subsistência aparecem como o único objeto e propósito das suas trocas com o capital" (12).

Teremos ocasião de discutir, mais tarde, a questão das necessidades diferenciais produzindo diferentes tipos de forças de trabalho. Por agora, vamos simplesmente notar que a questão da reprodução da força de trabalho não é de modo algum uma questão simples. Como podemos ver, há já a intimação de uma totalidade complexa ao considerar a "morada oculta de produção" de Marx e seu impulso estruturante na superfície da "economia". O esboço original de Marx, enriquecido agora através do quadro de reprodução social da força de trabalho, complica completamente a estreita definição burguesa de "economia" e/ou "produção" com que começamos, de formas muito fundamentais.

Para além da imagem bidimensional do indivíduo produtor direto encerrado no trabalho assalariado, começamos a ver emergir uma miríade capilar de relações sociais que se estendem entre local de trabalho, casa, escolas, hospitais - um todo social muito mais amplo, sustentado e coproduzido pelo trabalho humano, de formas contraditórias mas constitutivas. Se direcionarmos a nossa atenção para essas veias profundas de incorporação das relações sociais, em qualquer sociedade atual, como podemos deixar de encontrar o sujeito caótico, multiétnico, multigénero, com capacidades diferenciadas, que é a classe trabalhadora global?

O par produção e reprodução

É importante, a este respeito, esclarecer que os que designamos acima como dois espaços separados - (a) espaços de produção de valor (ponto de produção); (b) espaços de reprodução da força de trabalho - podem estar separados num sentido estritamente espacial, mas estão, na verdade, unidos, em sentido teórico e operacional (13). São formas históricas particulares de aparência, nas quais o capitalismo se coloca. De facto, às vezes os dois processos podem estar em andamento dentro do mesmo espaço. Consideremos o caso das escolas públicas. Estas funcionam tanto como locais de trabalho ou pontos de produção quanto como espaços onde a força de trabalho (do futuro trabalhador) é socialmente reproduzida. Como no caso das pensões, assim no caso da saúde pública ou da educação, o Estado gasta alguns fundos para a reprodução social da força de trabalho. É somente dentro do lar que o processo de reprodução social permanece sem ser remunerado.

A questão das esferas separadas e por que são elas formas históricas de aparência é importante, valendo a pena dedicar algum tempo à sua dilucidação.

Um equívoco comum sobre a "teoria da reprodução social" é o de que ela trata de dois espaços separados e dois processos de produção separados: o económico e o social - muitas vezes entendidos como o local de trabalho e o lar. Nesse entendimento, o trabalhador produz mais-valia no trabalho e, portanto, faz parte da produção da riqueza total da sociedade. No final do dia de trabalho, porque o trabalhador é "livre" sob o capitalismo, o capital deve renunciar ao controlo sobre o processo de regeneração do trabalhador e, consequentemente, sobre a reprodução da força de trabalho.

Marx, no entanto, tem um entendimento e uma proposta muito específicos para o conceito de reprodução social.

Em primeiro lugar, este é um conceito teórico que ele emprega para chamar a atenção para a reprodução da sociedade como um todo, não apenas para a regeneração da força de trabalho do trabalhador ou a reprodução da força de trabalho. Esta compreensão do teatro do capitalismo como uma totalidade é importante, porque, neste ponto da exposição, no Volume 1 de O Capital, Marx já estabeleceu que, ao contrário da economia burguesa que vê a mercadoria como o caráter central da sua narrativa (a oferta e a procura determinam o mercado), é o trabalho que é, para si, o principal protagonista. Assim, o que acontece com o trabalho - especificamente, como o trabalho cria valor e, consequentemente, mais-valia - molda a totalidade do processo capitalista de produção. "No conceito de valor", diz Marx nos Grundrisse, o "segredo do capital é traído" (14).

A reprodução social do sistema capitalista - e é para explicar a reprodução do sistema que Marx usa o termo - não repousa, portanto, na separação entre uma esfera não económica e outra económica, tratando antes de como o impulso económico da produção capitalista condiciona o chamado não-económico. Esse "não-económico" inclui, entre outras coisas, que tipo de Estado, instituições jurídicas e formas de propriedade moldam uma sociedade - enquanto estes, por sua vez, são condicionados, mas nem sempre determinados, pela economia. Marx entende cada etapa particular da valorização do capital como um momento de uma totalidade, o que o leva a afirmar claramente em O Capital: "Quando visto, portanto, como um todo conectado, e no fluxo constante de sua incessante renovação, todo processo social de produção é ao mesmo tempo um processo de reprodução” (15).

Esta abordagem está melhor delineada no livro Beyond Capital de Michael Lebowitz. O trabalho de Lebowitz é uma magistral análise integrativa da economia política da força de trabalho, na qual ele mostra que a compreensão da reprodução social do trabalho assalariado não é um fenómeno externo ou incidental que deva ser "acrescentado" à compreensão do capitalismo como um todo, mas na verdade revela importantes tendências internas do sistema. Lebowitz considera o momento da produção da força de trabalho de "um segundo momento" da produção como um todo. Este momento é "distinto do processo de produção do capital", mas o circuito do capital "implica necessariamente um segundo circuito, o circuito do trabalho assalariado" (16).

Como Marx resume, apropriadamente, e de forma um pouco estilizada:

"O processo capitalista de produção, portanto, visto como um processo totalmente conectado, ou seja, um processo de reprodução, produz não apenas mercadorias, não apenas mais-valia, mas também produz, e reproduz, a própria relação capitalista; de um lado o capitalista, do outro o trabalhador assalariado" (17).

Aqui, por reprodução social, Marx quer dizer a reprodução da totalidade da sociedade, o que nos traz de volta à mercadoria única, a força de trabalho, que precisa de ser reabastecida e finalmente substituída, sem que haja quebras ou interrupções no circuito contínuo de produção e reprodução do todo.

Há muito em jogo, tanto do ponto de vista teórico quanto do estratégico, na compreensão deste processo de produção de mercadorias e do de reprodução da força de trabalho como unificados. Nomeadamente, (a) precisamos não apenas de abandonar o quadro de distintas e separadas esferas de produção e reprodução, mas também (b) porque a reprodução está ligada, dentro do capitalismo, à produção, precisamos de rever a nossa percepção de senso comum de que o capital abandona todo o controle sobre o trabalhador quando este (a) sai do local de trabalho.

Teoricamente, se admitirmos que a produção de mercadorias e a reprodução social da força de trabalho pertencem a processos separados, então não temos nenhuma explicação para que o trabalhador esteja subordinado antes mesmo de ocorrer o momento da produção. Por que é que o trabalho aparece, nas palavras de Marx, "tímido e reticente, como quem está trazendo sua própria pele para o mercado"? É porque Marx tem uma visão unitária do processo que ele consegue nos mostrar que o momento da produção da simples mercadoria não é necessariamente um ponto de entrada singular para a escravidão do trabalho. Portanto, "na realidade", diz Marx, "o trabalhador pertence ao capital antes de se ter vendido ao capitalista". A sua escravidão económica é, simultaneamente, mediada e ocultada pela renovação periódica do ato pelo qual ele se vende a si próprio, pelas suas mudanças de amo e pelas oscilações no preço de mercado do seu trabalho" (18).

Mas esta ligação entre produção e reprodução, e a extensão da relação de classe a esta última, significa que, como veremos na próxima seção, os próprios atos em que a classe trabalhadora se esforça para atender às suas necessidades próprias podem ser terreno apropriado para a luta de classes.

Reprodução alargada: a chave para a luta de classes

O que liga o trabalhador ao capital?

Sob o capitalismo, uma vez que os meios de produção (para produzir valores de uso) são detidos pelos capitalistas, o(a) trabalhador(a) só tem acesso aos meios de subsistência através do processo de produção capitalista - vendendo a sua força de trabalho ao capitalista em troca de salários, com os quais possa comprar e acessar os meios de sua vida, ou subsistência.

Este esquema de relação capital-trabalho é fortemente baseado em duas coisas: (a) que o(a) trabalhador(a) é forçado(a) a entrar nessa relação porque tem necessidades, como ser humano, para reproduzir a sua vida, mas não pode fazê-lo sozinho(a) porque foi separado(a) dos meios de produção pelo capital; e (b) que ele(a) entra nas relações salariais devido às suas necessidades de subsistência, o que significa que as necessidades de "vida" (subsistência) têm uma profunda conexão integral com o reino do "trabalho" (exploração).

Até aqui estamos mais ou menos em território indisputado na teoria marxista.

As delimitações exatas das relações entre o valor da força de trabalho, as necessidades do(a) trabalhador(a) e como estas, por sua vez, afetam a mais-valia não são, no entanto, indiscutíveis nem adequadamente teorizadas em O Capital. É a isso que vamos dedicar a parte restante desta secção.

Revisitemos o momento, em O Capital, em que até mesmo o consumo individual do trabalhador também é dado como fazendo parte do circuito do capital, porque a reprodução do trabalhador é, como lhe chama Marx, "um fator da produção e reprodução do capital".

Uma premissa central que Marx nos oferece sobre a força de trabalho é que o seu valor é definido pelo "valor dos bens necessários para produzir, desenvolver, manter e perpetuar a força de trabalho" (19). Mas há algo mais nesta formulação. Para produzir um argumento lógico (em vez de um argumento histórico), Marx trata o padrão de necessidades como constante: "Em determinado país, num determinado período, a quantidade média de meios de subsistência necessária para o trabalhador é um dado conhecido (20).

Em O Capital, o valor da força de trabalho com base no padrão de necessidade (U) é tomado como constante e as mudanças no preço da força de trabalho são atribuídas à introdução de maquinaria e/ou aos aumentos e quedas da oferta e procura de trabalhadores no mercado de trabalho.

Como Lebowitz tem apontado, tomar como facto esta suposição metodológica colocaria Marx mais próximo dos economistas clássicos: endossar a formulação de que as mudanças da oferta no mercado de trabalho e a introdução de máquinas ajustariam o preço do trabalho ao seu valor, assim como fazem para todas as outras mercadorias.

Mas há uma razão pela qual a força de trabalho do trabalhador é considerada uma mercadoria única por Marx, ao contrário, digamos, do açúcar ou do algodão. No caso do trabalhador, um processo inverso pode ocorrer: o valor da sua força de trabalho pode ajustar-se ao preço e não o contrário. O trabalhador pode ajustar (baixar ou aumentar) as suas necessidades ao que recebe em salários.

De acordo com Lebowitz, Marx não tem um conceito generalizado de salários reais constantes (meios de subsistência, U), mas apenas o adota como uma "hipótese metodologicamente correta" (21). Ao contrário dos economistas políticos burgueses, Marx sempre "rejeitou a tendência... a tratar as necessidades dos trabalhadores como naturalmente determinadas e imutáveis". Foi um erro evidente, pensou Marx, conceitualizar o nível de subsistência "como uma magnitude imutável - que, em sua visão [dos economistas burgueses], é determinada inteiramente pela natureza e não pelo estágio do desenvolvimento histórico, que é em si mesmo uma magnitude sujeita a flutuações" (22). Nada poderia ser "mais estranho a Marx", enfatiza Lebowitz, do que "a crença num conjunto fixo de necessidades" (23).

Vamos considerar um cenário em que o padrão de necessidades (U) é fixado como dita Marx, mas há um aumento na produtividade (q). Neste caso, o valor do conjunto de bens salariais (o nosso cabaz original de bens x) cairia, reduzindo assim o valor da força de trabalho. Neste cenário, Marx diz que a força de trabalho "estaria inalterada no preço" mas este "teria subido acima do seu valor". Isto significa que, com mais salários em dinheiro à sua disposição, os trabalhadores podem começar a comprar mais bens ou serviços que satisfaçam as suas necessidades. Mas, de acordo com Lebowitz, isso nunca acontece. Em vez disso, os salários em dinheiro tendem a se ajustar aos salários reais, e os capitalistas são, portanto, capazes de retirar os benefícios do valor reduzido da força de trabalho. Lebowitz prossegue então explicando porque é que os capitalistas, em vez dos trabalhadores, se beneficiam com este cenário.

Em poucas palavras, ele ressalta que o padrão da necessidade (U) não é invariável, mas é na verdade "determinado pela luta de classes". Assim, com um aumento na produtividade (q) e um "declínio no valor dos bens salariais, que proporciona alguma folga no orçamento dos trabalhadores, os capitalistas... [são] encorajados a tentar reduzir os salários em dinheiro de forma a capturar o ganho para si mesmos, na forma de mais-valia" (24). Mas quando vemos que o padrão de necessidades é variável e pode ser determinado pela luta de classes, torna-se claro que a classe trabalhadora também pode lutar nesta frente. Na verdade, esta é uma das consequências de entender o sentido expandido em que a economia é realmente um conjunto de relações sociais atravessado por uma luta pelo poder de classe.

Uma vez que reconheçamos a luta de classes como um componente das relações de produção, torna-se claro, como mostra Lebowitz, que existem dois diferentes "momentos de produção". Eles são compostos de "dois objetivos diferentes, duas perspetivas diferentes sobre o valor da força de trabalho: enquanto para o capital, o valor da força de trabalho é um meio para satisfazer o seu objetivo de mais-valia... para o trabalhador assalariado, é o meio de satisfazer o seu objetivo do autodesenvolvimento" (25).

A reprodução, em suma, é, pois um local de conflito de classes. No entanto, este conflito é influenciado por certas tendências contraditórias. Por exemplo, por um lado, como orquestradora do processo de produção, a classe capitalista se esforça por limitar as necessidades e o consumo da classe trabalhadora. Mas, por outro lado, para garantir a realização constante da mais-valia, o capital deve também criar novas necessidades na classe trabalhadora como consumidores e depois "satisfazer" essas novas necessidades com novas mercadorias. O crescimento das necessidades dos trabalhadores sob o capitalismo é, portanto, uma condição inerente da produção capitalista e sua expansão.

Uma complicação adicional nesta luta de classes sobre os termos da reprodução é que o crescimento das necessidades dos trabalhadores não é secular nem absoluto. A posição da classe trabalhadora sob o capitalismo é relativa, ou seja, está sempre situada em relação com a classe capitalista. Portanto, quaisquer mudanças nas necessidades e no nível da sua satisfação dos trabalhadores, também são relativas a mudanças equivalentes para os capitalistas. Marx usou o exemplo memorável de como a perceção do tamanho de uma casa (sua grandeza ou pequenez) era relativa ao tamanho das casas suas vizinhas (26). Assim, uma geração de uma classe trabalhadora pode ganhar, em termos absolutos, mais do que a geração sua anterior; no entanto, a sua satisfação nunca será absoluta, pois que a geração sua contemporânea de capitalistas sempre terá mais. Uma vez que o crescimento das necessidades dos trabalhadores, portanto, faz parte do processo de valorização do capital e sua satisfação plena não pode ocorrer no âmbito do sistema, a luta dos trabalhadores para satisfazer as suas próprias necessidades é também inerente e parte integrante do sistema.

Se incluirmos a luta por salários mais altos (para satisfazer necessidades cada vez maiores) no argumento de O Capital, será isso um "acrescento" exógeno, e portanto eclético, ao marxismo? Lebowitz mostra que não é assim.

O que O Capital nos propõe é o caminho da reprodução para o capital. Marx representa o movimento do capital como um circuito:

D - M (Mp, Ft) - P - M' - D'

O dinheiro (D) é trocado por mercadorias (M) que é uma combinação de (i) meios de produção (Mp) e (ii) força de trabalho (Ft). Os dois elementos se combinam através da produção capitalista (P) para produzir novas mercadorias e mais-valia (M') que serão então trocadas por uma maior quantidade de dinheiro (D'). Este circuito é tanto contínuo como completo sobre si mesmo, descartando quaisquer elementos exógenos.

Mas e quanto ao circuito de reprodução do trabalho assalariado?

A "singularidade" da força de trabalho reside no facto de que, embora não seja produzida e reproduzida pelo capital, ela é vital para o próprio circuito de produção do capital. Em O Capital, Marx não teoriza este segundo circuito, mas simplesmente observa que "A manutenção e reprodução da classe trabalhadora continua a ser uma condição necessária para a reprodução do capital", e que "o capitalista pode deixar isso ao cuidado do instinto de autopreservação e propagação do trabalhador". É aqui que Lebowitz argumenta que deve ser reconhecida a falta de um circuito de produção e reprodução, o da força de trabalho. Marx talvez tivesse abordado o tema em volumes posteriores de O Capital, mas isso permanece incompleto como o "Livro em Falta sobre Trabalho Assalariado".

Uma vez que integremos teoricamente os dois circuitos - o da produção e reprodução do capital com o seu equivalente para a força de trabalho - as próprias mercadorias revelam as suas funções duais.

As mercadorias produzidas sob a produção capitalista são tanto meios de produção (comprados pelo capital por dinheiro) como artigos de consumo (comprados pelos trabalhadores com seus salários). Um segundo circuito de produção deve então ser considerado, distinto do do capital, embora em relação com ele. Esse circuito é o seguinte:

D - Ac - P - Ft – D

O dinheiro (D), nas mãos do trabalhador, é trocado por artigos de consumo (Ac) que são depois consumidos num processo semelhante de produção (P). Mas agora o que é produzido neste "processo de produção" é uma mercadoria única - a força de trabalho do trabalhador (Ft). Uma vez produzida (ou reproduzida), é então vendida ao capitalista em troca de salários (D).

A produção de força de trabalho ocorre então fora do circuito imediato do capital, mas permanece essencial para ele. Dentro do circuito do capital, a força de trabalho é um meio de produção para a reprodução ou valorização do capital. Mas dentro do circuito do trabalho assalariado, o(a) trabalhador(a) consome mercadorias como valores de uso (alimentação, vestuário, habitação, educação) para se reproduzir. O segundo circuito é um processo de produção do si próprio para o trabalhador ou um processo de autotransformação.

O segundo circuito de produção encerra uma atividade intencional, sob a própria autodireção dos trabalhadores. O objetivo desse processo não é a valorização do capital, mas o autodesenvolvimento do trabalhador. As necessidades historicamente incorporadas do trabalhador, que por sua vez mudam e crescem com o crescimento capitalista, fornecem o motivo para este processo de trabalho. Os meios de produção para este circuito são os múltiplos valores de uso de que a classe trabalhadora necessita para se desenvolver. Estes são mais do que apenas meios de reprodução biológica simples, mas são "necessidades sociais":

“A participação nas satisfações superiores, mesmo culturais, a agitação por seus próprios interesses, a assinatura de jornais, a participação em palestras, a educação dos seus filhos, o desenvolvimento de seu gosto etc., a sua distinta parcela de civilização que o distingue do escravo, [o que] só é economicamente possível ampliando a esfera de seus prazeres nos momentos em que os negócios correm bem...” (27).

Se a classe trabalhadora pode ter acesso a tais bens sociais, e até que ponto pode, depende não só da existência de tais bens e serviços na sociedade, mas também da disputa entre capital e trabalho sobre a mais-valia (que reproduz o capital) e a cesta de bens (que reproduz o trabalhador). Por um lado, o trabalhador consome valores de uso para regenerar a sua força de trabalho fresca. Mas, por outro lado, a reprodução da força de trabalho também pressupõe, como Lebowitz mostra perceptivamente, um objetivo ideal para o trabalhador:

“O segundo aspeto do trabalhador considerado como um processo de trabalho é que a atividade envolvida neste processo é "atividade intencional". Por outras palavras, há um objetivo preconcebido, um objetivo que existe idealmente, antes que o próprio processo... [e este objetivo] é a conceção de si mesmo do trabalhador - como determinado dentro da sociedade... Esse objetivo preconcebido da produção é o que Marx descreveu como "a própria necessidade de desenvolvimento do trabalhador" (28).

No entanto, os materiais necessários para produzir o trabalhador à imagem das suas próprias necessidades e objetivos - sejam eles alimentação, alojamento, "tempo de educação, de desenvolvimento intelectual" ou o "jogo livre de seus próprios poderes físicos e mentais" - não podem ser realizados dentro do processo de produção capitalista, pois o processo como um todo existe para a valorização do capital e não para o desenvolvimento social do trabalho. Assim, o(a) trabalhador(a), devido à própria natureza do processo, está sempre já reproduzido(a) como carente do que precisa e, portanto, embutida no tecido do trabalho assalariado como forma, está a luta por salários mais altos: a luta de classes. E aqui, finalmente, chegamos às implicações estratégicas da teoria da reprodução social, ou por que uma compreensão integrativa do capitalismo é necessária nas nossas batalhas reais contra o capital.

O quadro da reprodução social como estratégia

O "grau real" do lucro, diz-nos Marx, "só se define com a luta contínua entre capital e trabalho, o capitalista tendendo constantemente a reduzir os salários ao seu mínimo físico, e a estender o dia de trabalho ao seu máximo físico, enquanto o trabalhador pressiona constantemente na direção oposta". Esta luta "decide-se na questão dos poderes respetivos dos combatentes" (29).

Note-se que, ao expor aqui a lógica interna do sistema, Marx não fala dos capitalistas individuais e dos locais de trabalho que estes comandam, mas do capital como um todo. Na verdade, Marx torna claro que, embora o sistema nos apareça como um conjunto de "muitos capitais", é o "capital em geral" que é o protagonista, enquanto os muitos capitais são finalmente moldados pelos determinantes inerentes do "capital em geral".

Se aplicarmos o que eu chamo este método de reprodução social da teoria do trabalho à questão da luta no local de trabalho, podemos agora ter alguns dados:

  1. Que os capitais individuais, em concorrência uns com os outros, vão tentar aumentar a mais-valia extraída do trabalhador.
  2. Que o trabalhador vai puxar na direção oposta para aumentar o tempo (quantidade), os salários e outros benefícios (qualidade de vida) de que pode dispor para o seu próprio desenvolvimento social. Isto, muito frequentemente, tomará a forma de luta por uma semana de trabalho mais curta, ou salários mais elevados e melhores condições de laboração no local de trabalho.

Qual é a situação ideal para o trabalhador? Que ele(a) puxe tudo na direção oposta, aniquilando a mais-valia por completo, ou seja, que só trabalhe as horas necessárias para reproduzir sua própria subsistência, dispondo do resto do tempo para fazer o que quiser. Essa é uma solução impossível, pois que assim o capital deixará de ser capital. A luta por salários mais elevados, benefícios, etc., num local de trabalho, contra um patrão, ou mesmo numa série de locais de trabalho e contra patrões específicos, é então apenas parte da luta fundamental do capital em geral contra o trabalho assalariado em geral. O trabalhador pode até "deixar" um patrão em particular, mas não pode optar por sair do sistema como um todo (enquanto o sistema tal como está existe):

“O trabalhador deixará o capitalista, a quem se vendeu, quantas vezes quiser, e o capitalista o dispensará quantas vezes achar conveniente, assim que não conseguir mais obter dele qualquer uso, ou, enfim, o uso dele exigido. 
Mas o trabalhador, cuja única fonte de rendimento é a venda da sua força de trabalho, não pode abandonar toda a classe de compradores, ou seja, a classe capitalista, a menos que abandone a sua própria existência. Ele não pertence a este ou àquele capitalista, mas à classe capitalista; e cabe-lhe a ele encontrar o seu homem - isto é, encontrar um comprador nesta classe capitalista” (30).

A maioria dos sindicatos, mesmo os mais militantes, estão tipicamente equipados para lutar contra o patrão individual ou um coletivo de patrões, que, nos termos empregues por Marx, assume a forma de "muitos capitais". Os sindicatos, contudo, deixam completamente de lado a tarefa de enfrentar o "capital em geral". Há uma razão muito boa para que isso seja assim.

Como mostra Lebowitz, o poder do capital "como proprietário dos produtos do trabalho é... tanto absoluto como mistificado" - isto acaba por reforçar a sua capacidade de comprar força de trabalho e submetê-la à sua vontade no processo de produção. Se o trabalhador quiser transcender a luta parcial por melhores condições de trabalho e direcionar todo o trabalho social para produzir apenas valores de uso para o desenvolvimento social e individual, então é esse poder subjacente do capital como um todo que deve ser confrontado. Mas o poder do capital nesta arena é qualitativamente diferente do das lutas no local de trabalho: "Não há uma área direta de confrontação entre capitalistas específicos e trabalhadores assalariados específicos nesta esfera, comparável àquela que surge espontaneamente no mercado de trabalho e no local de trabalho... [Em vez disso] o poder do capital como proprietário dos produtos do trabalho aparece como a dependência em que o trabalho assalariado se encontra perante o capital como um todo” (31).

Considerem-se as duas maneiras pelas quais a mais-valia pode ser aumentada: uma, a extensão absoluta do dia de trabalho e a outra, cortando nos salários ou reduzindo o custo de vida, reduzindo assim o tempo de trabalho necessário. Embora Marx afirme claramente que a mais-valia absoluta e relativa são conceitos relacionados, é bastante claro que alguns aspetos deste processo de realização (os esforços do patrão para reduzir os salários, por exemplo) são mais facilmente confrontados no local de trabalho do que outros.

Tomemos um exemplo histórico de como o sistema como um todo às vezes aumentará a mais-valia relativa ao reduzir o custo de vida da classe trabalhadora como um todo. Durante o século XVIII, uma secção da classe trabalhadora na Grã-Bretanha foi reduzida a uma dieta de batatas, uma opção alimentar mais barata do que o trigo, de tal forma que o custo da alimentação dos trabalhadores foi rebaixado, barateando assim o custo do trabalho como um todo. Um dos melhores, e sem dúvida dos mais líricos historiadores da vida da classe trabalhadora, E. P. Thompson, chamou a isso uma "guerra de classes dietética regular", travada durante mais de 50 anos contra a classe trabalhadora inglesa. Que formas concretas tomou esta guerra de classes? Enquanto o barateamento da mão-de-obra aumentou a mais-valia no ponto de produção e, portanto, beneficiou os patrões no local de trabalho, não foi apenas no local de trabalho, ou às mãos dos patrões, que ocorreu esse barateamento da mão-de-obra. Thompson dá-nos um relato comovente de como "os proprietários de terras, os fazendeiros, os párocos, os fabricantes e o próprio governo procuraram conduzir os seus trabalhadores de uma dieta de trigo para uma de batata (32). A classe dominante, como classe, forçou então o aumento da superfície de cultivo de batata em detrimento da de trigo, levando o historiador Redcliffe Salaman a afirmar, com razão, que "o uso da batata... permitiu, de facto, que os trabalhadores sobrevivessem com o salário mais baixo possível" (33). Da mesma forma, Sandra Halperin mostrou como, no final do século XIX, o investimento britânico no exterior, o controle sobre as colónias, as suas ferrovias, portos e construção naval, permitiram o acesso a cereais bálticos e norte-americanos, "produzindo um refluxo de matérias-primas e alimentos baratos que não encontraram competidor na agricultura doméstica inglesa e reduziram os salários da classe trabalhadora doméstica" (34).

Os sindicatos, mesmo os melhores, por natureza, lutam contra capitais específicos e particulares, mas os exemplos acima dados mostram a necessidade de enfrentar o capital na sua totalidade. Lebowitz conclui, com precisão, que "na ausência de tal oposição total, os sindicatos lutam contra os efeitos dentro do mercado de trabalho e do local de trabalho, mas não contra as causas desses efeitos" (35).

Aos seus camaradas da Primeira Internacional, Marx apontou precisamente esta limitação das lutas sindicais. Os sindicatos, apontou Marx, estavam "Demasiado exclusivamente voltados para as lutas locais e imediatas com o capital" e "ainda não tinham compreendido plenamente o seu poder de agir contra o próprio sistema de escravidão assalariada". O que constituiu, segundo Marx, prova dessa sua estreiteza? Que "eles se mantiveram demasiado afastados dos movimentos sociais e políticos em geral". O conselho de Marx para eles era que superassem essa estreiteza e fossem além da luta puramente económica pelos salários:

"eles devem agora aprender a agir deliberadamente como centros organizadores da classe trabalhadora no amplo interesse de sua completa emancipação. Devem ajudar a todos os movimentos sociais e políticos que tendam nessa direção. Considerando-se e agindo como campeões e representantes de toda a classe trabalhadora, eles não podem deixar de alistar os homens não-afiliados em suas fileiras. Eles devem zelar cuidadosamente pelos interesses dos ofícios mais mal pagos, como os dos trabalhadores agrícolas, tornados impotentes [o texto em francês tem: "incapazes de resistência organizada"] por circunstâncias excecionais. Eles devem convencer o mundo em geral [os textos francês e alemão dizem: "convencer as amplas massas de trabalhadores"] de que os seus esforços, longe de serem estreitos - e egoístas -, visam a emancipação dos milhões de oprimidos" (36).

Se tomarmos como referência o próprio Marx, então está fora de questão designar somente a luta económica por salários e benefícios no local de trabalho como luta de classes. Todo o movimento social e político "tendendo" na direção de ganhos para a classe trabalhadora como um todo, ou de desafio ao poder do capital como um todo, deve ser considerado um aspeto da luta de classes.

Significativamente, uma das maiores tragédias da destruição do poder da classe trabalhadora e da dissolução das comunidades proletárias vivas, nos últimos quarenta anos, foi a perda na prática desta visão sobre a totalidade social da produção de valor e da reprodução da força de trabalho.

Em qualquer momento da história, uma classe trabalhadora pode ou não ser capaz de lutar por salários mais altos no ponto de produção. Os sindicatos podem não existir ou podem ser fracos e/ou corruptos. No entanto, à medida que os itens na cesta de bens mudam (queda ou aumento na qualidade e quantidade dos bens sociais), a classe está profundamente consciente de tais mudanças na sua vida como um todo, e essas batalhas podem emergir longe do ponto de produção, mas, no entanto, refletirem as necessidades e os imperativos da classe. Por outras palavras, onde a luta por um salário mais elevado não for possível, diferentes tipos de lutas em torno do circuito da reprodução social podem também irromper. Será então de admirar que, na era do neoliberalismo, quando os sindicatos que fazem agitação no ponto de produção (pelos salários) são fracos ou inexistentes em grande parte do globo, tenhamos crescentes movimentos sociais em torno de questões de condições de vida, desde a luta pela água em Cochabamba e na Irlanda, a questões de despejo de terras na Índia e lutas por uma habitação decente no Reino Unido e em outros lugares? Um padrão talvez melhor resumido pela palavra de ordem dos manifestantes anti-austeridade de Portugal: "Que se lixe a troika! Queremos as nossas vidas!"

A classe trabalhadora: solidariedade e "diferença"

Devemos então reconsiderar a nossa visão conceptual da classe trabalhadora. Não estou aqui sugerindo uma contabilidade concreta de quem constitui a classe trabalhadora global, embora isso seja um exercício importante. Em vez disso, a partir de nossa discussão anterior sobre a necessidade de reimaginar uma figuração mais completa para "economia" e "produção", proponho aqui três coisas: (a) uma reafirmação teórica da classe trabalhadora como sujeito revolucionário; (b) um entendimento mais amplo de classe trabalhadora do que apenas aqueles que estão empregados como trabalhadores assalariados num dado momento; e (c) uma reconsideração da luta de classes para significar mais do que a luta por salários e condições de trabalho.

A premissa para esta reconsideração é uma compreensão particular do materialismo histórico. Marx nos lembrou que "a forma económica específica pela qual o trabalho excedente não pago é bombeado a partir dos produtores diretos, determina a relação entre governantes e governados, à medida que cresce diretamente da própria produção e, por sua vez, reage sobre ela como um elemento determinante" (37).

Sob o capitalismo, o trabalho assalariado é a forma generalizada através da qual os dominantes expropriam os produtores diretos. Em abstrato, o capital é indiferente à raça, ao género ou às capacidades dos produtores diretos, desde que a sua força de trabalho possa desencadear o processo de acumulação. Mas as relações de produção, como vimos na secção anterior, são na verdade uma concatenação das relações sociais existentes, moldadas pela história passada, pelas instituições presentes e pelas formas de Estado. As relações sociais fora do trabalho assalariado não são acidentais a ele, mas assumem uma forma histórica específica em resposta a ele. Por exemplo, a natureza marcada pelo género da reprodução da força de trabalho tem impulsos condicionantes para a extração de mais-valia. Da mesma maneira, uma forma heterossexista de unidade familiar é sustentada pelas necessidades do capital para a substituição geracional da força de trabalho.

A questão da "diferença" dentro da classe trabalhadora é significativa a este respeito. Como já foi mencionado anteriormente, Marx dirigiu-se a secções diferentemente "produzidas" da classe trabalhadora na sua discussão sobre o trabalhador irlandês, sendo o trabalhador inglês "produzido" com acesso a uma melhor cesta de bens, as suas necessidades sendo ajustadas a esse nível mais elevado, enquanto o trabalhador irlandês permanece num nível brutal de existência, com apenas "o mínimo absoluto das necessidades animais". Obviamente, Marx não acreditava que o valor da força de trabalho do(a) trabalhador(a) irlandês(a) fosse uma constante que permanecesse abaixo da sua contraparte inglesa devido à etnia. Em vez disso, foi um resultado da luta de classes, ou falta dela, e era o trabalhador inglês que precisava de entender a uniformidade dos seus interesses de classe com os irlandeses, contra o capital como um todo.

Incorporar a luta de classes como um elemento crucial na determinação da extensão e da qualidade da reprodução social do trabalhador permite-nos então compreender verdadeiramente o significado de uma noção marxista de "diferença" dentro da classe. Reconhecer que, em qualquer momento histórico, a classe trabalhadora pode ser produzida de forma diferente (com salários variáveis e acesso diferenciado a meios de reprodução social) é mais do que simplesmente afirmar uma verdade empírica. Ao mostrar como as relações sociais concretas e as histórias de luta contribuem para a "reprodução" da força de trabalho, este quadro aponta realmente para os filamentos de solidariedade de classe que devem ser forjados, às vezes dentro e às vezes fora do local de trabalho, a fim de aumentar a "partilha da civilização" por todos os trabalhadores.

Escrevendo na Grã-Bretanha no início dos anos 1980, quando a classe trabalhadora estava sendo fisicamente brutalizada pelo thatcherismo e teoricamente atacada por uma série de teorias liberais, Raymond Williams compreendeu muito bem os perigos de uma falsa dicotomia entre "lutas de classes" e "novos movimentos sociais":

"todos os movimentos sociais significativos dos últimos trinta anos começaram fora dos interesses e instituições de classe organizados. O movimento pela Paz, o movimento ecologista, o movimento das mulheres, as agências de direitos humanos, as campanhas contra a pobreza e a falta de habitação... todos têm esse caráter, que surgiu das necessidades e perceções para as quais as organizações baseadas em interesses não tinham espaço ou tempo, ou que pura e simplesmente não compreenderam" (38).

Hoje, podemos acrescentar à lista as recentes lutas contra a brutalidade policial nos Estados Unidos da América.

Mas, embora essas lutas possam surgir fora do local de trabalho, ou ser entendidas como lutas por interesses extra-classe, Williams aponta para o absurdo de tal caracterização:

O que é então bastante absurdo é rejeitar ou subestimar esses movimentos como sendo "questões de classe média". É uma consequência da própria ordem social que essas questões sejam qualificadas e refratadas dessa forma. É igualmente absurdo afastar essas questões como não relevantes para os interesses centrais da classe trabalhadora. Em todos os sentidos reais, elas pertencem a esses interesses centrais. São os trabalhadores que estão mais expostos a processos industriais perigosos e a danos ambientais. São as mulheres da classe trabalhadora que mais precisam dos novos direitos das mulheres... (39) 

Se por quaisquer razões históricas as organizações que supostamente defendem a "luta de classes", como os sindicatos, não conseguem ser insurgentes, isso não significa que a "luta de classes" vá embora, ou que essas lutas estão para "além da classe". Na verdade, como Williams astutamente observou, "não há uma única dessas questões que, se prosseguida até ao fim, não nos leve aos sistemas centrais do modo de produção industrial-capitalista e... ao seu sistema de classes".

Compreender a forma complexa, mas unificada, como a produção de mercadorias e a reprodução da força de trabalho ocorrem, ajuda-nos a compreender como a alocação concreta do trabalho total da sociedade é socialmente organizada, de formas racializadas e marcadas pelo género, por meio das lições aprendidas pelo capital em épocas históricas anteriores e por meio da sua luta contra a classe trabalhadora. O processo de acumulação, portanto, na realidade, não pode ser indiferente às categorias sociais de raça, sexualidade ou género, mas procura organizar e moldar estas categorias que, por sua vez, agem sobre a forma determinada de extração do trabalho excedente. A relação de trabalho assalariado permeia os espaços da vida quotidiana não assalariada.

"Um desenvolvimento das forças da classe trabalhadora - suspende o próprio capital"

Se à reprodução social da força de trabalho é concedida a centralidade teórica que lhe propomos, quão útil é isso para a nossa segunda proposta - o repensar da classe trabalhadora?

A teoria da Reprodução Social ilumina as relações sociais e os caminhos envolvidos na reprodução da força de trabalho, ampliando assim a nossa visão de como devemos abordar a noção de classe trabalhadora.

O quadro demonstra porque não devemos quedar-nos tranquilos com a compreensão limitada da classe como simplesmente aqueles que estão atualmente empregados na dinâmica capital versus trabalho assalariado. Isso restringiria a nossa visão do poder de classe e a nossa identificação de potenciais agentes de solidariedade de classe.

“Trabalhador assalariado" pode ser a definição correta para aqueles que atualmente trabalham por um salário, mas esta visão, reafirmemo-lo, é apenas a própria de um "secretário sindical". A classe trabalhadora, para o marxista revolucionário, deve ser percebida como incluindo todo o membro da classe produtora que, na sua vida, participou da totalidade da reprodução da sociedade - independentemente de esse trabalho ter sido pago pelo capital ou não ter sido pago. Essa visão integradora de classe reúne a trabalhadora temporária latina do hotel de Los Angeles, a mãe trabalhadora de horário flexível de Indiana, que precisa ficar em casa devido aos altos custos dos cuidados infantis, o professor afro-americano a tempo integral de Chicago, e os homens brancos e desempregados, antigos trabalhadores da indústria automóvel de Detroit. Mas eles se reúnem, não em competição uns com os outros – que é uma visão da classe trabalhadora ainda em termos de mercado - mas em solidariedade. A organização estratégica com base nesta visão pode reintroduzir a ideia de que uma ofensa feita à professora em Chicago é realmente uma ofensa feita a todos os outros.

Quando restauramos um sentido de totalidade social para a classe, começamos imediatamente a reformular a arena para a luta de classes.

Qual tem sido a forma da luta de classes unilateral movida pela classe dominante global nas últimas quatro décadas do neoliberalismo?

É crucial entender que tem sido um ataque duplo do capital, ao trabalho global, para tentar reestruturar a produção nos locais de trabalho, e aos processos sociais de reprodução da força de trabalho, nos lares, comunidades e nichos da vida quotidiana.

No local de trabalho, em primeiro lugar, o assalto tomou como objetivo quebrar a coluna do poder sindical. O edifício neoliberal, como já argumentei numa outra ocasião (40), foi construído com base numa série de derrotas para a classe trabalhadora global, sendo os exemplos mais espetaculares as dos controladores de tráfego aéreo nos Estados Unidos da América (1981), dos trabalhadores têxteis na Índia (1982) e dos mineiros no Reino Unido (1984-85).

Se o ataque da classe dominante no local de trabalho, ou contra o trabalho produtivo, tomou a forma de um violento anti-sindicalismo, certamente não terminou por aí. Fora do local de trabalho, o ataque ao trabalho reprodutivo foi igualmente vicioso. Para países específicos, pode-se dizer que essa segunda linha de ataque foi ainda maior. No caso dos E.U.A., vários estudiosos, de David McNally e Anwar Shaikh a Kim Moody, mostraram como um declínio absoluto nos padrões de vida e trabalho da classe trabalhadora construiu a expansão capitalista da década de 1980. Áreas-chave da reprodução social foram atacadas, por meio da aceleração na privatização dos serviços sociais e da redução de importantes programas federais, como a ajuda a crianças dependentes, a ajuda temporária a famílias carentes, o seguro-desemprego e a previdência social. No Sul global, isso tomou a forma do aumento forçado do preço das importações – imposto pelo FMI e pelo Banco Mundial - a maior parte das quais, para esses países, eram cereais, combustíveis e medicamentos.

Esta foi uma aberta guerra de classe, estrategicamente travada contra toda a classe trabalhadora, não apenas contra os seus membros assalariados, que se tornou tão eficaz precisamente porque se estendeu para além dos limites do local de trabalho. Ao privatizar sistematicamente recursos anteriormente socializados, rebaixando a qualidade dos serviços, o capital visava tornar mais vulnerável e precário o trabalho diária de regeneração, ao mesmo tempo que descarregava nas famílias individuais toda a responsabilidade e discurso da reprodução. Onde estes processos de degradação do trabalho de reprodução social funcionaram mais eficazmente foi em contextos sociais onde o capital podia apostar, criar de novo ou reativar práticas e discursos de opressão. Desde pregões racistas contra as "rainhas da segurança social", novas formas de sexualização dos corpos que diminuíram as escolhas sexuais, à crescente islamofobia, o neoliberalismo encontrou formas cada vez mais criativas de ofender a classe trabalhadora. Ele destruiu a confiança de classe, corroeu culturas de solidariedade anteriormente bem assimiladas e, mais importante ainda, em certas comunidades, conseguiu apagar um crucial sentido de continuidade e memória de classe.

Espaços de insurgência: confrontando o capital para além do recinto da fábrica

Um dos dirigentes de uma recente ocupação de fábrica na Índia explicou a um repórter de negócios chocado: "O poder de negociação dos trabalhadores é maior na própria fábrica, pois ninguém nos ouve quando nós chegamos a Jantar Mantar [praça de protesto tradicional na capital indiana de Delhi]” (41).

O discernimento moldado pela experiência deste trabalhador rebelde é muitas vezes o senso comum político-económico do marxismo revolucionário sobre as relações capital-trabalho. A leitura "dominante" de Marx localiza as possibilidades de uma confrontação político crítica da classe trabalhadora com o capital, principalmente no ponto de produção, onde o poder dos trabalhadores para afetar os lucros é maior.

Este ensaio, até aqui, tem sido uma leitura contraintuitiva da importância teórica da categoria de "produção" e, portanto, devemos agora considerar a importância estratégica do local de trabalho como um espaço de organização central. Recentes estudos do Sul global, por exemplo, sobre as "linhas coolie" na Índia ou o "regime de dormitório de trabalho" na China, trazem a uma impressionante proeminência analítica não só os lugares onde a classe trabalhadora trabalha, mas também os espaços onde a classe trabalhadora dorme, brinca, vai à escola - ou seja, por outras palavras, vive uma vida sensual plena para além do local de trabalho. Que papel desempenham esses espaços na organização contra o capital? E, mais importante ainda, as lutas nos pontos de produção não têm agora mais nenhuma relevância estratégica?

Os contornos da luta de classes (ou o que é tradicionalmente entendido como tal) são muito claros no local de trabalho. O trabalhador sente o domínio do capital por experiência própria, no dia-a-dia, e compreende o seu poder supremo sobre a sua vida, o seu tempo, as suas hipóteses de vida, na verdade, sobre a sua capacidade de existir e planear qualquer futuro. As lutas no local de trabalho têm, portanto, duas vantagens insubstituíveis. Primeiro, elas têm metas e objetivos claros. Segundo, os trabalhadores estão concentrados nesses pontos no próprio circuito de reprodução do capital e têm o poder coletivo de fechar certas partes da operação. É precisamente por isso que Marx chamou aos sindicatos "centros de organização da classe trabalhadora" (42). É também por isso que o primeiro ataque do capital é sempre contra setores organizados da classe, para quebrar esse poder.

Mas repensemos a importância teórica da luta extra-laboral, como a luta por um ar mais limpo, melhores escolas, contra a privatização da água, contra as mudanças climáticas ou por políticas habitacionais mais justas. Estas lutas refletem, assim o proponho, as necessidades sociais da classe trabalhadora que são essenciais para a sua reprodução social. São também um esforço da classe para exigir a sua "parcela de civilização". Nisso, são também lutas de classe.

A devastação trazida pelo neoliberalismo aos bairros da classe trabalhadora no Norte global deixou para trás edifícios entaipados, casas de penhores e habitações despejadas. No Sul global, criou vastas favelas como terreno fértil para a violência e a miséria (43). A exigência dessas comunidades para ampliar sua "esfera de prazer" é, portanto, uma exigência de classe vital. Marx e Engels, escrevendo em 1850, avançaram a ideia de que os trabalhadores devem "fazer de cada comunidade o ponto central e núcleo das associações de trabalhadores, em que a atitude e os interesses do proletariado serão discutidos independentemente dos interesses burgueses" (44).

É a nossa vez agora de restaurar nos nossos órgãos e práticas de protesto esta compreensão integrativa da totalidade capitalista. Se o projeto socialista continuar a ser o desmantelamento do trabalho assalariado, fracassaremos nesse projeto a menos que entendamos que a relação entre trabalho assalariado e capital é sustentada de toda uma série de formas não assalariadas e em todos os tipos de espaços sociais - não apenas no trabalho.

Quando o Sindicato dos Trabalhadores do Automóvel (United Auto Workers) quis organizar uma secção sindical na fábrica da Volkswagen no Sul norte-americano, os seus dirigentes burocráticos mantiveram uma separação religiosa entre seu trabalho sindical na fábrica e a experiência vivida pelos trabalhadores na comunidade. Os dirigentes sindicais assinaram um contrato com os patrões para que nunca falassem com os trabalhadores em suas casas. Mas estas eram comunidades que nunca tinham experimentado o poder sindical, nunca tinham cantado canções de trabalho ou feito piqueniques em salões sindicais. Os sindicatos desempenharam pouco papel na textura social de suas vidas. Numa comunidade deste género, devastada e atomizada como era pelo capital, o movimento sindical só poderia ser reconstruído se isso fizesse sentido do ponto de vista da totalidade das suas vidas e não apenas de forma setorial, no trabalho apenas.

Contraste-se essa tática com a usada pelo Sindicato dos Professores de Chicago para reconstruir o seu sindicato. Eles fizeram o que a UAW não fez, que é conectar as lutas no local de trabalho com as necessidades de uma comunidade mais ampla. Durante anos, eles trouxeram a bandeira do seu sindicato para um bairro desolado após outro, quando estavam prestes a perder mais uma escola para os privatizadores, protestando contra o encerramento de escolas. Na pobreza profundamente racializada de Chicago, a luta de um sindicato tentando salvar o direito a aprender de uma criança da classe trabalhadora fez a diferença. Assim, quando este mesmo sindicato entrou em greve, já havia estabelecido toda uma história de trabalho e de luta em espaços extralaborais, razão pela qual a classe trabalhadora de Chicago entendeu a greve como a sua própria luta, pelo futuro dos seus filhos. E quando os professores grevistas de camisas vermelhas encheram as ruas da cidade, a classe trabalhadora citadina deu-lhes a sua solidariedade e apoio.

Queremos que esses insurgentes da classe trabalhadora inundem as ruas da cidade como fizeram em Chicago durante a greve da CTU. Para preparar a nossa teoria e a nossa práxis para estarmos prontos para esses tempos, a primeira paragem deve ser uma compreensão reavivada de classe, resgatada de décadas de reducionismo económico e sindicalismo empresarial. Os papéis constitutivos desempenhados pela raça, género ou etnia na classe trabalhadora precisam de ser re-reconhecidos, enquanto a luta é reanimada por visões mais amplas do poder de classe, para além das negociações contratuais.

Só uma tal luta terá o poder de romper com a "morada oculta" do capital e devolver o controlo da nossa capacidade sensual, tátil e criativa de trabalhar a quem ela realmente pertence - a nós mesmos.

Notas:

1. Muitos conceitos marxistas fundacionais, é claro, são inerentes e derivam desta proposição. As questões da aparente separação entre, digamos, economia e política, ou o Estado e a sociedade civil, estão implicadas nesta questão da aparência. Para mais detalhes, consulte Ellen Meiksins Wood, “The Separation of the ‘economic’ and the ‘political’ in capitalism” in Democracy Against Capitalism: Renewing Historical Materialism (Cambridge: Cambridge University Press, 1995); Peter D. Thomas, The Gramscian Moment: Philosophy, Hegemony and Marxism (Boston: Brill, 2009).

2. Ellen Meiksins Wood, The Retreat from Class: A New ‘True Socialism’ (London: Verso, 1986), p. 111.

3. Karl Marx, Capital: A Critique of Political Economy, vol. 1, tradução de Ben Fowkes (New York: Penguin Books, 1976), p. 280.

4. Marx, Capital, vol. 1, p. 274.

5. Marx, Capital, vol. 1, p. 270.

6. "A força de trabalho nem sempre foi uma mercadoria. O trabalho nem sempre foi trabalho assalariado, ou seja, trabalho livre. O escravo não vendia a sua força de trabalho ao proprietário de escravos, assim como o boi não vendia o seu trabalho ao fazendeiro. O escravo, juntamente com a sua força de trabalho, era vendido ao seu dono de uma vez por todas. Ele é uma mercadoria que pode passar da mão de um dono para a mão de um outro. Ele próprio é uma mercadoria, mas a sua força de trabalho não é a sua mercadoria. O servo vende apenas uma parte da sua força de trabalho. Não é ele quem recebe o salário do dono da terra; é antes o dono da terra que recebe um tributo dele. O servo pertence à terra, e ao senhor da terra ele traz o seu fruto. O trabalhador livre, por outro lado, vende o seu próprio eu, e isso por frações. Ele licita oito, 10, 12, 15 horas da sua vida, num dia como no seguinte, ao maior lance, ao dono da matéria-prima, das ferramentas e dos meios de vida - ou seja, ao capitalista. O trabalhador não pertence nem ao dono nem ao solo, mas oito, 10, 12, 15 horas da sua vida diária pertencem a quem quer que as compre". Cf. "Wage, Labor and Capital" in Marx e Engels Collected Works, Vol. 9 (New York: International Publishers, 1986), p. 203. Esta, no entanto, não é a história toda. Jairus Banaji demonstrou de forma convincente que "o trabalho assalariado", ou seja, "a mercadoria força de trabalho, era conhecida, sob várias formas de produção social, antes da época capitalista". O que distinguia o capitalismo de todos os outros modos de produção era que o trabalho assalariado "nesta simples determinação como a mercadoria força de trabalho, era a base necessária do capitalismo como forma generalizada de produção social". [ênfase minha, TB]. O papel específico que o trabalho assalariado desempenhava sob o capitalismo era que ele era "trabalho pressuposto do capital, criador de capital". Ver Banaji, “Modes of production in a materialist conception of history” in Theory as History: Essays on Modes of Production and Exploitation (Chicago: Haymarket Books, 2011), p. 54.

7. Marx, Capital, vol. 1, p. 272.

8. Ibid., p. 274.

9. Ibid.

10. Ibid., p. 275.

(11) Para mais detalhes, leia-se Lise Vogel, Marxism and the Oppression of Women: Towards a Unitary Theory (Chicago, IL: Haymarket Books, 2014 [1983]).

(12) “Outlines of the Critique of Political Economy (Rough Draft of 1857-58)”, in Marx and Engels Collected Works, Vol. 28 (New York: International Publishers, 1986), p. 215.

(13) Há uma rica literatura e um debate sobre o estatuto do trabalho doméstico como trabalho que produz valor. Para argumentos a favor do trabalho doméstico como produtor de mais-valia veja-se o trabalho de ativistas-teóricas como Selma James, Mariarosa Dalla Costa e Silvia Federici, e.g., leia-se: Mariarosa Dalla Costa, “Women and the Subversion of the Community,” Radical America, Vol. 6, n.º 1 (January-February 1972). Originalmente publicado em italiano como "Donne e sovversione sociale", em Potere femminile e sovversione sociale (Padova: Marsilio, 1972); Selma James, "Wageless of the World", em All Work and No Pay, eds. Wendy Edmonds e Suzie Fleming (Bristol: Falling Wall Press,1975). Para a posição de que o trabalho doméstico não produz mais-valia, que subscrevo, ver Paul Smith, "Domestic Labor and Marx's Theory of Value" em Feminism and Materialism: Women and Modes of Production, eds. Annette Kuhn e Annmarie Wolpe (Boston: Routledge e Kegan Paul, 1978). Embora discorde do argumento de que o trabalho doméstico é trabalho produtivo não remunerado, é importante enfatizar aqui que temos uma grande dívida analítica para com as feministas do trabalho doméstico dos anos 1970, por teorizarem as questões do trabalho doméstico, num esforço para superar essa lacuna em Marx.

(14) Karl Marx, Grundrisse (London: Penguin Classics, 1993), pp. 776 ff.

(15) Marx, Capital, vol. 1, p. 711.

(16) Michael A. Lebowitz, Beyond Capital: Marx’s Political Economy of the Working Class, 2nd ed. (Basingstoke: Palgrave McMillian, 2003), p. 65. Ênfase no original.

(17) Marx, Capital, vol. 1, p. 724.

(18) Ibid., p. 724.

(19) Karl Marx, Value, Price, Profit: Speech by Karl Marx to the First International Working Men’s Association (New York: International Co., 1969), ch. 6.

(20) Marx, Capital, vol. 1, p. 275.

(21) Lebowitz, p. 31.

(22) Theories of Surplus Value, quoted in Lebowitz, p. 32.

(23) Ibid., p. 31.

(24) Ibid., p. 110.

(25) Ibid., p. 127.

(26) “Wage Labor and Capital” in Marx e Engels Collected Works, Vol. 9 (New York: International Publishers, 1986), p. 216.

(27) Marx, Grundrisse (London: Penguin Classics, 1993), p. 287.

(28) Lebowtiz, p. 69.

(29) Karl Marx, Wages, Price and Profits (Peking: Foreign Language Press, 1975), p. 74.

(30) “Wage Labor and Capital” in Marx e Engels Collected Works, Vol. 9 (New York: International Publishers, 1986), p. 203.

(31) Lebowitz, p. 96.

(32) E. P. Thompson, The Making of the English Working Class (Harmondsworth: Penguin, 1963), p. 347.

(33) R. N. Salaman citado in Thompson, The Making of the English Working Class, p. 348.

(34) Sandra Halperin, War and Social Change in Modern Europe: the Great Transformation Revisited (Cambridge: Cambridge University Press, 2004), p. 91-92.

(35) Lebowitz, p. 96.

(36) Karl Marx, “Instructions for the Delegates of the Provisional General Council. Different Questions” in Minutes of the General Council of the First International, citadas in Lebowitz, p. 97.

(37) Karl Marx, Capital III (Moscow: Progress Publishers, 1971), p. 791.

(38) Raymond Williams, Towards 2000 (London: Chatto & Windus, 1983), p. 172.

(39) Ibid., p. 255.

(40) Tithi Bhattacharya, “Explaining Gender Violence in the Neoliberal Era”, International Socialist Review, N.º 91 (Winter 2013-14), pp. 25-47.

(41) Cf. Aman Sethi, “India's young workforce adopts new forms of protest”, Business Standard, 5 de maio de 2014.

(42) Karl Marx, “Trades’ Unions: Their Past, Present and Future”, in Instructions for the Delegates of the Provisional General Council: The Different Questions. The International Workingmen’s Association, 1886.

(43) Para detalhes sobre favelas urbanas e violência de género na Índia, leia-se o meu artigo “India’s Daughter: Neoliberalism’s Dreams and the Nightmares of Violence”, International Socialist Review, N.º 97 (Summer 2015), pp. 53-71.

(44) “Address of the Central Committee to the Communist League” in Marx e Engels Collected Works, Vol. 10 (New York: International Publishers, 1986), pp. 282-83.

Sobre a autora

Tithi Bhattacharya é natural de Bengala e atualmente Professora de História e Diretora de Estudos Globais na Universidade de Purdue (West Lafayette, Indiana, E.U.A.). A sua especialidade académica é a História da Ásia do Sul. O seu primeiro livro, The Sentinels of Culture: Class, Education, and the Colonial Intellectual in Bengal (Oxford, 2005), é sobre a obsessão com a cultura e a educação na classe média bengali. Trabalhos seus têm surgido em publicações como Journal of Asian Studies, South Asia Research, Electronic Intifada, Jacobin, Salon.com e New Left Review. Participa no conselho editorial de Studies on Asia e na International Socialist Review. É co-autora (com Nancy Fraser e Cinzia Arruzza) de Feminism for the 99% (Verso, London-New York, 2019), um manifesto feminista extensamente traduzido e divulgado em todo o mundo. Está atualmente trabalhando num projeto de livro intitulado Uncanny Histories: Fear, Superstition and Reason in Colonial Bengal. Está também editando um volume de ensaios intitulado Mapping Social Reproduction Theory, sobre género e trabalho, com colaboração dos principais estudiosos e ativistas marxistas que exploram a vitalidade da teoria da reprodução social como uma componente central orientadora das lutas políticas concretas do nosso tempo. A autora é uma ativista de sempre pela justiça social, presente na sua comunidade local, bem como em lutas nacionais e internacionais, em três continentes. O presente ensaio foi originalmente publicado na Viewpoint Magazine. A autora agradece a Charles Post, Colin Barker, Gareth Dale, Andrew Ryder e Bill V. Mullen pela leitura de versões preliminares deste ensaio e por fazerem extensos comentários. A tradução é de Ângelo Novo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Guia essencial para a Jacobin

A Jacobin tem divulgado conteúdo socialista em ritmo acelerado desde 2010. Eis aqui um guia prático para algumas das obras mais importantes ...