21 de junho de 2023

A discreta campanha dos EUA para defender a eleição no Brasil

Em meio a especulações generalizadas sobre uma tentativa de golpe, o governo Biden pressionou políticos e generais a respeitarem o resultado

Michael Stott, Michael Pooler e Bryan Harris


O governo Biden manteve a pressão nos bastidores para garantir que o presidente Jair Bolsonaro não pudesse declarar o resultado da eleição inválido. Montagem FT/AFP/Getty Images

Tradução / Enquanto o Brasil se preparava para realizar uma eleição presidencial em outubro, muitos governos ao redor do mundo viam a votação com uma sensação crescente de mau presságio.

O presidente de extrema-direita, Jair Bolsonaro, flertava abertamente com a subversão da democracia no país. Ele atacou o processo eleitoral, alegando que as urnas eletrônicas usadas pelas autoridades brasileiras não eram confiáveis e pedindo em vez disso o uso de cédulas de papel. Ele insinuava constantemente sobre o risco de a eleição ser fraudada, repetindo afirmações feitas por Donald Trump nos Estados Unidos.

Mas, no fim, a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva em outubro foi aceita sem grandes questionamentos por Bolsonaro e o veterano político de esquerda foi empossado em 1º de janeiro.

Ex-presidente Jair Bolsonaro — Foto: Eraldo Peres/AP

O fato de a eleição não ter sido duramente questionada é um testemunho da força das instituições no Brasil. Mas foi também em parte o resultado de uma pressão silenciosa de um ano pelo governo dos EUA para conclamar os líderes políticos e militares do país a respeitarem e protegerem a democracia, o que não foi amplamente divulgado.

O objetivo era enfatizar duas mensagens consistentes para generais inquietos no Brasil e aliados próximos de Bolsonaro: Washington estava neutra em relação ao resultado da eleição, mas não toleraria nenhuma tentativa de pôr em dúvida o processo eleitoral ou seu resultado.

O "Financial Times" conversou com seis atuais e ex-autoridades dos EUA envolvidas no esforço, além de várias figuras institucionais brasileiras importantes, para contar a história de como o governo Biden se engajou no que um ex-alto funcionário do Departamento de Estado chama de campanha de mensagens "muito incomum" nos meses que levaram à eleição, usando canais públicos e privados.

Todas elas esforçavam-se para destacar que a maior parte do crédito por salvar a democracia brasileira diante do ataque de Bolsonaro era dos próprios brasileiros e suas instituições democráticas, que se mantiveram firmes diante dos desafios extraordinários impostos por um presidente empenhado em se manter no poder.

Os EUA tinham um incentivo político claro para querer demonstrar uma capacidade de moldar os acontecimentos na região. Por muito tempo o poder externo dominante na América Latina, o país viu sua influência ser corroída nos últimos anos pela crescente presença chinesa.

O governo americano também tinha uma motivação mais direta. Após a invasão do Capitólio por apoiadores de Trump em 6 de janeiro, na tentativa de anular os resultados da eleição de 2020, Biden ficou muito preocupado com qualquer tentativa de Bolsonaro de colocar em dúvida o resultado de uma eleição livre e justa, segundo autoridades americanas.

A campanha não foi isenta de riscos. Os EUA são frequentemente criticados na região por interferir em seus assuntos internos; em 1964 Washington apoiou um golpe militar no Brasil para derrubar o governo de esquerda do presidente João Goulart, dando início a uma ditadura que durou 21 anos.

Esses eventos alimentaram um ceticismo de longa duração da esquerda brasileira com os EUA, incluindo Lula, que em 2020 disse que Washington estava “sempre por trás” dos esforços para minar a democracia na região.

O governo Biden teve que encontrar uma maneira de transmitir sua mensagem sem que os EUA se tornassem um joguete político em uma eleição ferozmente disputada.

A solução foi uma campanha coordenada, mas não anunciada, em várias ramificações do governo dos EUA, como os militares, a CIA, o Departamento de Estado, o Pentágono e a Casa Branca. “Foi um empenho muito incomum”, diz Michael McKinley, uma ex-autoridade de alto escalão do Departamento de Estado e ex-embaixador no Brasil.

"Foi uma estratégia que durou quase um ano, conduzida com objetivo muito específico em mente, não de apoiar um candidato brasileiro ou outro, mas sim muito concentrada no processo eleitoral, em garantir que o processo funcionasse."

Segundo Tom Shannon, um ex-funcionário de alto escalão do Departamento de Estado, o esforço começou com a visita do assessor de segurança nacional de Joe Biden, Jake Sullivan, ao Brasil em agosto de 2021. Um comunicado da embaixada disse que a visita “reafirmou a relação estratégica de longa data entre os EUA e o Brasil”, mas Sullivan deixou seu encontro com Bolsonaro preocupado, segundo Shannon.

"Bolsonaro continuou falando sobre fraude nas eleições americanas e continuou entendendo suas relações com os EUA em termos de suas relações com o presidente Trump", diz Shannon, que também já foi embaixador no Brasil e mantém contatos próximos no país.

"Sullivan e a equipe que o acompanhou saíram pensando que Bolsonaro seria totalmente capaz de tentar manipular os resultados da eleição ou negá-los como Donald Trump havia feito. Portanto, pensou-se muito em como os EUA poderiam apoiar o processo eleitoral sem parecer estar interferindo. E é assim que começa."

Quando a campanha eleitoral começou, o Brasil era um barril de pólvora. O país estava profundamente dividido entre Bolsonaro, um ex-capitão do Exército e aliado próximo de Trump, e Lula, um ícone da esquerda.

Os riscos para a democracia brasileira eram claros. Bolsonaro havia celebrado a ditadura militar, que governou o Brasil entre 1964 e 1985 e em seu primeiro mandato cobriu as Forças Armadas e a polícia com elogios e dinheiro, aumentando seus orçamentos e entregando cargos importantes do governo a militares da ativa.

Em agosto de 2021, ele ordenou que tanques desfilassem diante do Congresso e do Supremo Tribunal Federal, no dia em que parlamentares votavam sua proposta mal sucedida de restabelecer as cédulas de papel nas votações.

Alguns generais ficaram desconfortáveis com as tentativas de Bolsonaro de politizar uma instituição que tentou ficar fora da política desde que devolveu o poder aos civis em 1985 e estavam preocupados com o risco de os militares saírem da Constituição. Hamilton Mourão, o vice-presidente de Bolsonaro, foi um deles.

Shannon relembra uma visita de Mourão a Nova York para um almoço privado com investidores em julho do ano passado, enquanto as tensões aumentavam. Após responder perguntas sobre o risco de um golpe, repetindo estar confiante de que as Forças Armadas do Brasil estavam comprometidas com a democracia, Mourão entrou em um elevador para sair do local e o ex-embaixador entrou junto.

"Enquanto a porta fechava, eu disse a ele: 'O senhor sabe que sua visita aqui é muito importante. O senhor ouviu as preocupações das pessoas que estavam à mesa. E eu compartilho dessas preocupações e, muito francamente, estou muito preocupado'. Mourão virou para mim e disse: 'Também estou muito preocupado'." Um porta-voz de Mourão não quis comentar.

No mesmo mês, Bolsonaro lançou formalmente sua candidatura à reeleição. “O Exército está do nosso lado”, disse ele a apoiadores.

Poucos dias antes do anúncio da campanha, o presidente redobrou os esforços para colocar em dúvida o processo eleitoral. Ele reuniu cerca de 70 embaixadores em Brasília e fez uma apresentação questionando a confiabilidade do sistema eletrônico de votação do Brasil. O país foi pioneiro na votação eletrônica em 1996 e é a única nação do mundo a coletar e contar os votos totalmente de forma digital.

Agora, Bolsonaro estava sugerindo que as urnas eletrônicas eram propensas a fraudes. Alarmadas, autoridades americanas decidiram que precisavam intensificar sua campanha de mensagens. Bolsonaro, raciocinaram, havia atraído a comunidade internacional para a controvérsia sobre as urnas eletrônicas ao convocar a reunião com os embaixadores e Washington precisava então deixar suas posições ainda mais claras.

No dia seguinte, o Departamento de Estado emitiu um endosso incomum ao sistema de votação afirmando que "o sistema eleitoral e as instituições democráticas do Brasil, capazes e testados pelo tempo, servem de modelo para nações do hemisfério e do mundo".

"A declaração dos EUA foi muito importante, especialmente para os militares", diz uma autoridade de alto escalão do Brasil. "Eles recebem equipamentos dos EUA e fazem treinamentos lá, de modo que ter boas relações com os EUA é muito importante para os militares brasileiros... A declaração foi um antídoto contra a intervenção militar."

Uma semana depois, o secretário de Defesa Lloyd Austin usou uma visita a uma reunião regional de ministros da Defesa em Brasília, para transmitir uma mensagem clara. As forças militares e de segurança precisavam estar “sob forte controle civil”, disse ele em um pronunciamento.

Em particular, Austin e outras autoridades explicaram aos militares brasileiros as consequências de apoiar qualquer ação inconstitucional, como um golpe. “Haveria ramificações negativas significativas para as relações bilaterais entre os militares e eles fizessem algo e eles precisavam respeitar o resultado das eleições”, disse uma autoridade de alto escalão.

Um reforço adicional à mensagem ao alto escalão do Brasil veio da general Laura Richardson, chefe do Comando Sul dos EUA, que cobre a América Latina, durante visitas feitas em setembro e novembro de 2021, segundo autoridades. O chefe da CIA, William Burns, também disse ao governo Bolsonaro para não criar problemas com as eleições.

"O secretário de Defesa, o chefe da CIA, o assessor de Segurança Nacional... Todos eles fizeram visitas em um ano eleitoral", diz McKinley. "Isso é comum? Não, não é."

Os EUA também forneceram ajuda prática ao processo eleitoral, ajudando a superar as dificuldades na cadeia de suprimentos para obter componentes, especialmente semicondutores, necessários à fabricação das urnas eletrônicas. O ex-embaixador dos EUA no Brasil, Anthony Harrington, conseguiu alavancar conexões dentro da fabricante de chips Texas Instruments para, segundo ele, “diferenciar as necessidades de semicondutores e dar prioridade ao impacto nas eleições democráticas”.

O Departamento de Estado dos EUA e algumas autoridades graduadas brasileiras também solicitaram às autoridades de Taiwan que dessem prioridade à necessidade do Brasil por semicondutores fabricados pela Nuvoton, uma empresa taiwanesa, que são usados nas urnas eletrônicas, segundo disseram duas fontes.

Ao mesmo tempo em que os EUA conduziam sua própria campanha de mensagens, figuras importantes de instituições brasileiras realizavam suas próprias reuniões privadas com os chefes militares para tentar convencê-los a permanecer dentro dos limites da constituição e alertar o exterior sobre os riscos de um golpe. Alguns dos envolvidos falaram com o “Financial Times”, pedindo para ficar no anonimato devido à sensibilidade das discussões. Muitos ainda preferem evitar qualquer menção aos papéis que desempenharam.

Um alto funcionário brasileiro que esteve envolvido de perto, lembra que o ministro da Marinha de Bolsonaro, o almirante Almir Garnier Santos, era o mais “difícil” dos chefes militares. “Ele foi realmente tentado por uma ação mais radical”, afirma esse funcionário. “Então, tivemos que fazer todo um trabalho de dissuasão. O Departamento de Estado e os militares dos EUA disseram que iriam romper acordos militares com o Brasil, como treinamentos e outros tipos de operações conjuntas.”

Em um jantar tenso no fim de agosto com chefes militares que foi até as duas da manhã, figuras importantes da sociedade civil tentaram convencê-los de que as urnas eletrônicas não estavam fraudadas contra Bolsonaro e que eles deveriam respeitar o resultado da eleição.

O momento era crucial: Bolsonaro estava convocando manifestações em massa em seu apoio para o 7 de Setembro, dia da independência do Brasil. Garnier não respondeu a pedidos para comentários.

Luís Roberto Barroso, um ministro do STF que na época comandava o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), diz que também participou da solicitação da declaração do Departamento de Estado dos EUA.

"Pedi várias vezes [a Douglas Koneff, então embaixador interino dos EUA no Brasil] por declarações sobre a integridade e credibilidade de nosso sistema eleitoral e sobre a importância da nossa democracia", lembra Barroso. "Ele fez uma declaração e, mais do que isso, conseguiu que o Departamento de Estado fizesse uma declaração apoiando a democracia no Brasil e a integridade do sistema."

A embaixada dos EUA recusou-se a comentar detalhes das reuniões confidenciais realizadas durante o período eleitoral.

Com a eleição se aproximando, autoridades graduadas dos EUA acreditavam que Bolsonaro também precisava ouvir mais vozes de dentro de seu próprio círculo.

Elas identificaram assessores próximos e aliados políticos, nem todos satisfeitos com as tentativas do presidente de permanecer no poder a todo custo, para conclamá-lo a respeitar o resultado da eleição.

Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, o vice-presidente Hamilton Mourão, Tarcísio Gomes de Freitas, o ministro da Infraestrutura de Bolsonaro, e o almirante Flávio Rocha, secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência, foram todos transmissores de mensagens dos EUA sobre a necessidade de proteger a integridade das eleições.

As autoridades dos EUA mantiveram uma comunicação regular com eles e outras figuras importantes do governo Bolsonaro. "Tivemos a sensação de que as pessoas em torno de Bolsonaro estavam insistindo para que ele fizesse a coisa certa", diz um alto funcionário do governo.

Na votação de 2 de outubro, nenhum candidato obteve a maioria. Mas depois do segundo turno, mais tarde naquele mês, ficou claro que Lula havia obtido uma vitória apertada, mas indiscutível. Vários aliados de Bolsonaro, incluindo Freitas e Lira, rapidamente reconheceram a vitória da esquerda. “Em 24 horas eles aceitaram os resultados do segundo turno”, diz McKinley. “Que golpe para quem pensava que havia espaço para contestar os resultados!”

Com a posse de Lula em 1º de janeiro se aproximando, as tensões prosseguiram. Em 12 de dezembro, manifestantes pró-Bolsonaro atacaram a polícia e botaram fogo em veículos em Brasília. Uma semana depois, o ex-capitão participou de um jantar com alguns membros mais moderados de seu círculo íntimo, segundo conta um dos presentes.

Com dúvidas sobre sua disposição de entregar a faixa presidencial para Lula no dia da posse, alguns aliados de Bolsonaro tentaram convencê-lo a antecipar seus planos de viajar para o exterior e faltar à posse, diz a fonte que participou do jantar.

Quando Bolsonaro partiu do Brasil para a Flórida, dois dias antes da posse de Lula, os americanos, juntamente com muitos brasileiros, respiraram aliviados. Mas o perigo não havia passado.

Em 8 de janeiro, milhares de apoiadores de Bolsonaro encenaram uma insurreição em Brasília, invadindo o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e o palácio presidencial, exigindo uma intervenção militar. Os militares brasileiros intervieram em poucas horas — mas para reprimir os protestos. Mais de 1.000 manifestantes foram presos.

Os EUA decidiram dar um último empurrão a favor do respeito ao resultado da eleição. O presidente Biden estava no México na ocasião do quebra-quebra em Brasília, para uma cúpula dos líderes norte-americanos, e ficou sabendo sobre o que estava acontecendo pelo noticiário. “Ele pediu na hora para falar com Lula”, diz uma autoridade graduada. “Após o telefonema, ele propôs ao primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, e ao presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, que emitíssemos uma declaração conjunta trilateral em apoio a Lula e ao Brasil. Foi a primeira declaração do tipo feita pela América do Norte.”

Com os manifestantes presos, os militares sob controle e Lula no poder, a democracia brasileira parece ter sobrevivido à ameaça potencial.

Para o governo Biden, as relações com o Brasil melhoraram mas ainda há atritos com o novo governo. Lula demonstrou pouco reconhecimento público da campanha dos EUA para proteger a eleição. Sua primeira visita oficial a Washington em fevereiro foi discreta e durou um dia.

Em abril, ele levou uma grande delegação para a China em uma visita de três dias por duas cidades. Naquela viagem, Lula rejeitou as sanções dos EUA à Huawei, a companhia chinesa de tecnologia, criticou o apoio militar do Ocidente à Ucrânia e apoiou a iniciativa de Pequim por uma alternativa ao dólar.

"As pessoas aqui entendem que haverá diferenças políticas", diz Shannon. "Mas há um tom da raiva e ressentimento latente em tudo isso que pegou as pessoas de surpresa... é como se ele não soubesse ou não quisesse reconhecer o que fizemos."

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