1 de novembro de 2025

Mamdani pode aprender com o socialismo municipal latino-americano

De 2005 a 2016, contrariando a vontade tanto do governo quanto da oposição, o pequeno município venezuelano de Torres passou por um experimento radical de democracia, dando aos moradores poder direto sobre o orçamento. Deu certo.

Gabriel Hetland

Jacobin

De 2005 a 2016, o município de Torres, na Venezuela, foi uma das cidades mais democráticas do mundo. Uma gestão de Zohran Mamdani poderia aprender com esse exemplo. (Michael M. Santiago / Getty Images)

Se você procura exemplos de sucesso de socialismo municipal, Torres, município no estado venezuelano de Lara, merece estar entre os primeiros da lista. De 2005 a 2016, Torres foi uma das cidades mais democráticas do mundo. Durante esses anos, os cidadãos comuns exerceram um nível extraordinário de controle sobre a tomada de decisões políticas locais. Sua ferramenta mais poderosa? Um orçamento participativo, que dava aos residentes controle vinculativo sobre todo o orçamento de investimentos municipais.

Nas assembleias distritais, participantes predominantemente da classe trabalhadora (trabalhadores agrícolas, cuidadores domésticos, pequenos agricultores, estudantes, professores e outros) ponderavam cuidadosamente os méritos de gastar seus recursos limitados em diversos projetos. Não havia exclusão com base em classe, raça e etnia, gênero, religião ou opiniões políticas, com a participação tanto de apoiadores do partido governista quanto da oposição. A participação foi massiva, com entre 8% e 25% da população de Torres, de 185.000 habitantes, participando do processo. Além de proporcionar controle popular real sobre a tomada de decisões, o Orçamento Participativo de Torres simplesmente funcionou. As decisões foram efetivamente vinculadas a resultados, com mais de 85% dos projetos concluídos em tempo hábil. E o processo beneficiou o partido no poder local, que foi posteriormente reeleito diversas vezes.

O sucesso de Torres e a forma como foi alcançado oferecem lições importantes para socialistas democráticos em outros lugares, incluindo aquele que muito provavelmente será o próximo prefeito de Nova York. De fato, existem paralelos impressionantes entre a ascensão de Zohran Mamdani e a do prefeito de Torres, Julio Chávez. Assim como Mamdani, Julio (como é universalmente chamado em Torres) entrou na disputa pela prefeitura, em 2004, como um candidato de extrema esquerda com poucas chances de vitória, apoiado por um partido de movimento social e enfrentando o prefeito em exercício e outros oponentes poderosos apoiados tanto pelo partido governista nacional de Hugo Chávez quanto pelas elites locais. Assim como Zohran, Julio tinha poucas chances de vencer e, assim como Zohran, surpreendeu a todos ao conseguir exatamente isso.

Uma vez no cargo, Julio buscou cumprir sua promessa de campanha de “construir o poder popular”. Em uma entrevista, ele elaborou sobre esse objetivo, que vinculou ao socialismo:

Afirmamos que todas as expressões do socialismo devem ser baseadas na participação popular, uma participação que impede o burocratismo... Este socialismo deve começar com a ideia de construir o poder popular... [e basear-se em] projetos que tornem visível o processo de governar com o povo, não para o povo, de modo que as decisões sejam tomadas pelo povo... Preferimos errar com o povo do que acertar sem o povo.

As observações de Julio apontam para um dos dois fatores-chave para o sucesso de sua administração, que se baseou, em primeiro lugar, na adaptação e reaproveitamento do discurso, das leis e das formas institucionais do partido governista. Com isso, quero dizer um partido de oposição que utiliza o conjunto de ferramentas políticas do partido governista — as ideias, leis e práticas pelas quais ele governa — de maneiras diferentes e para propósitos diferentes. Durante a era Hugo Chávez, as ideias sobre participação, poder popular e socialismo tornaram-se discursiva e institucionalmente centrais em toda a Venezuela. Quando foi eleito prefeito, Julio Chávez não era membro do partido governista, o Movimento Quinta República, mas utilizou ativamente ideias, leis e formas organizacionais associadas ao chavismo, como o orçamento participativo, os conselhos comunais e o socialismo. Crucialmente, porém, a administração de Julio inseriu essas ideias e formas organizacionais em um contexto local que diferia do nacional em aspectos críticos. Esses princípios incluíam um forte respeito pelo pluralismo político, um compromisso genuíno com o controle popular sobre a tomada de decisões (com os mecanismos institucionais necessários para assegurá-lo) e eficácia institucional, na qual o governo local realmente cumpre suas promessas.

O Orçamento Participativo de Torres simplesmente funcionou. As decisões foram efetivamente vinculadas a resultados, com mais de 85% dos projetos concluídos em tempo hábil.

A segunda chave para o sucesso de Torres foi a ligação da administração com as classes populares altamente mobilizadas e organizadas. Julio deixou clara sua posição na luta de classes, afirmando: “os oligarcas governaram aqui por quarenta anos e sempre controlaram a administração local”. Sua administração, por outro lado, orgulhosamente se alinhou às classes populares e trabalhou ativamente para redistribuir riqueza e recursos dos ricos para os pobres. Um dos primeiros atos de Julio como prefeito foi eliminar a pensão vitalícia paga ao chefe da igreja local, que era muito conservadora e alinhada à oligarquia, e realocar os fundos para idosos carentes. Em coordenação com o Instituto Nacional da Terra, a Prefeitura de Torres expropriou cinco grandes fazendas, totalizando mais de quinze mil hectares. Julio disse: “Esperamos devolver [a terra] às mãos de quem sempre a possuiu, os camponeses da região... Travamos uma guerra contra os latifundiários, a luta pela terra”. Julio falou com orgulho da “municipalização do recinto de feiras”, que, segundo ele, somente “a oligarquia [antes] utilizava... Os pequenos camponeses agora podem ir lá e exibir seus bodes com orgulho, os mesmos camponeses e criadores de cabras que [os pecuaristas] sempre chamaram desdenhosamente de ‘chiveros’”. Compromissos democráticos populares como esse são notoriamente difíceis de reverter, e Edgar Patana, sucessor de Julio na prefeitura, prometeu “apoio incondicional aos pequenos e médios produtores”.

A Prefeitura de Torres liderou um grande esforço para organizar e mobilizar os moradores, encabeçado pelo Escritório de Participação Cidadã. O sucesso desse esforço foi impulsionado pelas trajetórias de figuras-chave do governo estadual que ingressaram na administração após anos, e muitas vezes décadas, de liderança e organização em movimentos sociais. Lalo Paez, que assim como o prefeito e muitos outros altos funcionários era um ex-líder de movimentos sociais, chefiou o escritório de participação, localizado no recém-municipalizado parque de exposições. Lalo e sua equipe primeiro organizaram conselhos comunitários e, posteriormente, organizaram e registraram conselhos e comunas. Isso facilitou um boom no associacionismo cívico, como mostra a Figura 1, e foi uma grande vantagem para o poder popular em Torres.

Gráfico 1

Durante os dois primeiros anos de mandato de Julio Chávez como prefeito, ele enfrentou repetidas resistências do Movimento Quinta República, partido governista que se opôs à sua candidatura. Mas essa estratégia logo se voltou contra ele, com Julio mobilizando sua base popular contra o obstrucionismo do partido. O resultado foi um vínculo ainda mais forte entre a prefeitura e as classes populares. Em junho de 2005, a Câmara Municipal de Torres, controlada pelo partido governista, recusou-se a aprovar uma lei que reconhecia os resultados da assembleia constituinte municipal de Torres, um processo participativo que reformulou as leis municipais de Torres. Em resposta, o prefeito mobilizou centenas de apoiadores para ocupar a prefeitura e pressionar a Câmara a reverter sua decisão. A lei foi finalmente aprovada no final de 2005, após uma eleição na qual os vereadores mais favoráveis ​​a Julio obtiveram a maioria. O prefeito também mobilizou apoiadores em dezembro de 2005, quando a Câmara se recusou a apoiar o orçamento participativo. Em maio de 2008, Julio tentou se candidatar ao governo do estado pelo Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), ao qual se filiou quando foi formado por chavistas em 2007. Os líderes regionais do partido bloquearam sua candidatura. Julio respondeu levando centenas de seus apoiadores à sede regional do partido. A estratégia funcionou e o partido permitiu que Julio se candidatasse.

Esses exemplos mostram como a organização e a mobilização popular, literalmente, sustentaram e tornaram possível o experimento socialista municipal de Torres.

O que Torres pode nos ensinar

Torres oferece duas lições principais e três secundárias para um governo Mamdani. A primeira é a utilidade de um partido de oposição local que reflita o conjunto de ferramentas políticas do partido governista nacional. Mamdani já aprendeu bem essa lição. Ele frequentemente menciona a promessa de campanha do presidente Trump para 2024 de reduzir o custo de vida e as inúmeras maneiras pelas quais as políticas de Trump falharam em atingir esse objetivo. Mamdani descreve então como suas próprias políticas emblemáticas — congelamento do aluguel, ônibus rápidos e gratuitos e o estabelecimento de creches universais — concretizarão algumas das promessas de Trump, que ele não conseguiu cumprir.

Mamdani menciona regularmente a promessa de campanha de Trump em 2024 de reduzir o custo de vida e as inúmeras maneiras pelas quais suas políticas falharam em atingir esse objetivo.

A segunda lição fundamental é a importância de organizar e mobilizar a classe trabalhadora, entendida em seu sentido amplo. O sucesso de Torres em facilitar um grau extraordinário de controle popular sobre a tomada de decisões políticas locais e redistribuir recursos dos ricos para os pobres baseou-se na organização e mobilização da classe trabalhadora. Isso foi feito de forma altamente inclusiva e deliberadamente apartidária. Foi crucial para a capacidade de Julio Chávez de superar a resistência das elites políticas locais e regionais, muitas das quais eram líderes do partido governista nacional da Venezuela. Quando essas elites tentaram bloquear as políticas participativas e redistributivas do prefeito, ele respondeu mobilizando repetidamente sua base da classe trabalhadora.

Desde que se tornou um candidato sério, Zohran tem enfrentado significativa resistência da administração Trump, bem como de líderes do Partido Democrata em níveis local, estadual e nacional. E a situação só tende a piorar após sua posse. Trump, outros republicanos e muitos democratas farão tudo o que puderem para bloquear as principais políticas de Zohran e suas soluções preferidas para financiá-las, como o aumento moderado de impostos sobre empresas e pessoas ricas. Para superar essa resistência, Mamdani precisará organizar e mobilizar sua base de trabalhadores e da classe média, para travar uma luta dentro e fora do estado. Já existem propostas de acadêmicos e ativistas como Eric Blanc sobre maneiras de fazer isso. A experiência de Torres sugere que organizar cidadãos comuns de forma apartidária — e de uma maneira que lhes dê poder real sobre as decisões que importam para suas vidas — pode ser uma estratégia eficaz. Torres também demonstra como a ação direta da classe trabalhadora, orquestrada por autoridades estaduais reformistas, pode efetivamente neutralizar a oposição intransigente das elites.

Uma terceira lição, de menor importância, é a relevância de ter funcionários públicos com trajetórias em movimentos sociais — ou seja, pessoas que chegam ao poder com longa experiência em organização e liderança de movimentos sociais. Isso foi fundamental para o sucesso de Torres em vários aspectos. Primeiro, esses funcionários conheciam a importância da organização popular e sabiam como realizá-la. Segundo, eles tinham vínculos de longa data com organizações populares. E terceiro, esses funcionários eram ideologicamente comprometidos com uma visão de socialismo democrático em que, como disse Julio Chávez, “o povo toma todas as decisões”. Por meio de seus vínculos com os Socialistas Democráticos da América e muitas organizações populares, Mamdani está bem posicionado para colocar líderes de movimentos em posições-chave em seu governo, mas já enfrenta pressão significativa para nomear líderes mais tradicionais para cargos importantes. Garantir a presença de líderes experientes de movimentos em todo o seu governo, principalmente em cargos de destaque, continua sendo vital.

Instituições participativas não apenas contribuem para a eficácia institucional, como também podem, por sua vez, fomentar a eficácia política.

Outra lição diz respeito ao desenho institucional, e especificamente ao desenho de instituições participativas. Como outros estudiosos demonstraram, as instituições participativas nem sempre se conectam às decisões reais que impactam a vida das pessoas, ou simplesmente não lhes conferem controle efetivo sobre essas decisões. As instituições participativas de Torres não apenas funcionaram, como também fomentaram o socialismo democrático porque (a) focavam em questões de grande importância para a vida das pessoas; (b) davam às pessoas controle real sobre essas decisões, com mecanismos institucionais que garantiam que, mesmo quando autoridades buscavam influenciar as decisões — como frequentemente acontecia —, a palavra final era dos cidadãos; e (c) envolviam os cidadãos em discussões deliberativas, criando assim um processo de aprendizado no qual, para citar Lalo Páez, funcionário do governo Torres e líder do movimento social, “o povo é o governo”. Zohran pouco falou sobre o fomento da tomada de decisões participativa, mas, se e quando seus planos nesse sentido forem revelados, a questão do desenho institucional deverá ser central.

A lição final aponta exatamente por que Zohran deve considerar seguir o exemplo de Torres: as instituições participativas não apenas contribuem para a eficácia institucional, como também podem, por sua vez, fomentar a eficácia política. Durante minha pesquisa em Torres, pude constatar isso claramente. Os cidadãos relataram que inicialmente se mostraram céticos em relação ao Orçamento Participativo de Torres, mas passaram a confiar nele após observarem os resultados ano após ano. O Orçamento Participativo de Torres também se provou uma ferramenta altamente eficaz para gerar consenso popular. Quando questionei, de forma provocativa, os moradores nas assembleias sobre o Orçamento Participativo: “Por que não deixar isso a cargo do prefeito?”, ouvi frequentemente respostas como: “No passado, os funcionários do governo passavam o dia todo em seus escritórios com ar-condicionado, tomando decisões de lá. Eles nunca sequer pisavam em nossas comunidades. Então, quem vocês acham que pode tomar uma decisão melhor sobre o que precisamos? Um funcionário em seu escritório com ar-condicionado, que nunca veio à nossa comunidade, ou alguém da comunidade?”

Em um momento de crescente autoritarismo — nacional e globalmente — muito depende do sucesso de Zohran. Levar em consideração as lições de Torres e de outros casos de socialismo municipal pode ajudar Zohran e todos os seus apoiadores a aproveitarem ao máximo essa oportunidade sem precedentes. Temos a oportunidade não só de tornar a cidade de Nova York mais acessível, mas também, como disse Zohran em seu comício de encerramento de campanha, de “nos libertar”.

Colaborador

Gabriel Hetland é professor associado de Estudos Latino-Americanos, Caribenhos e Latinx na SUNY Albany e autor de Democracy on the Ground: Local Politics in Latin America’s Left Turn (2023).

"Matar, matar, matar": Como lidar com a morte em Gaza

Os israelenses precisam debater três afirmações: que matar dezenas de milhares em Gaza foi necessário, não foi culpa de Israel e foi o resultado inevitável de uma guerra de alta tecnologia.

Michael L. Gross
Michael L. Gross é professor de ciência política na Universidade de Haifa.


Ilustração de Shoshana Schultz/The New York Times

Em conversas que antecederam o acordo de cessar-fogo entre o Hamas e Israel, o Presidente Trump disse ter dito ao Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu: “Você será lembrado por isso” — encerrar a guerra em Gaza — “muito mais do que se você tivesse mantido essa coisa indo, indo, indo, matar, matar, matar.”

Matar, matar, matar: Com essas palavras, Trump evocou a perda de vidas em grande escala em dois anos de combate. Não desde os dias de castigo do Antigo Testamento os Judeus mataram tantas pessoas quanto matamos em Gaza. O número é assombroso e pode chegar a 100.000 civis e combatentes quando os escombros forem removidos. Isso não é uma acusação. É apenas a pura verdade.

Não importa como expliquemos, justifiquemos ou nomeemos, esse fato permanece, e é algo com que os judeus — quer se opusessem ou apoiassem a conduta de Israel na guerra — especialmente em Israel, mas também no exterior, devem acertar as contas se a comunidade judaica quiser se desvencilhar do trauma desta guerra, que começou com o ataque de 7 de outubro de 2023 pelo Hamas que deixou cerca de 1.200 pessoas mortas em Israel. Como uma nação orgulhosa de sua tradição moral, como fazemos isso?

O primeiro passo é lidar com a verdade. Em discussões com colegas, amigos e estudantes, frequentemente ouço três argumentos para justificar o alto número de baixas: que matar dezenas de milhares em Gaza foi necessário, que a matança não foi culpa de Israel e que o número de mortos foi o resultado inevitável de uma guerra de alta tecnologia. Essas alegações, por mais que pareçam compensar os custos morais, são verdades parciais, na melhor das hipóteses, suposições que devemos confrontar honestamente por meio de debate concertado e educação pública.

No momento, há apenas perguntas a serem feitas sobre essas suposições. Ainda precisamos encontrar as respostas.

A morte em guerra pode ser considerada necessária, de acordo com o direito internacional e a teoria da guerra justa, quando é a única maneira de degradar suficientemente as capacidades militares de um agressor e frustrar a terrível ameaça que eles representam. O direito à legítima defesa cessa quando esse objetivo é alcançado.

Aqui, todos nós devemos nos perguntar: Israel alcançou esse objetivo e — o que é tão importante quanto — quando? Isso ocorreu quando as Forças de Defesa de Israel (FDI) empurraram o Hamas para trás nos primeiros dias do combate, durante o primeiro cessar-fogo em novembro de 2023 ou quando a capacidade do Hamas de lançar mísseis contra Israel cessou em grande parte alguns meses depois? Ocorreu à medida que assassinatos direcionados da liderança militar do Hamas degradaram a infraestrutura de comando e controle do grupo?

O Hamas só foi significativamente incapacitado na época do segundo cessar-fogo em janeiro de 2025? Ou foi apenas na semana anterior ao mais recente cessar-fogo, mediado por Trump? Esclarecer isso é essencial porque quaisquer mortes, israelenses ou palestinas, são gratuitas se foram desnecessárias. Podemos fechar os olhos ou podemos olhar para trás agora para oportunidades perdidas, momentos de oposição militar à continuação do combate e mudança da opinião pública para entender e julgar nossa matança na guerra.

Mesmo que se estabeleça que a matança foi necessária, isso não explica facilmente sua escala. Por que Israel precisou matar tantos palestinos? É por causa da forma como o Hamas luta? Os combatentes do Hamas tomaram escolas, enquanto alguns civis palestinos participaram do ataque em Israel e outros aprisionaram reféns em suas casas. Como resultado, a maioria dos israelenses — 62% em uma pesquisa recente — continua convencida até hoje de que não há civis inocentes em Gaza. De acordo com essa visão, todas as pessoas que vivem em Gaza são combatentes, todas lutam contra Israel e nenhuma goza de proteção contra a morte.

E assim, por essa lógica, devemos perguntar: quantos civis em Gaza realmente participaram desta guerra? Que papéis de combate ou apoio eles cumpriram? Eles incluíram crianças e idosos, que constituem um número significativo dos que foram mortos? Somente depois de termos essa informação podemos começar a avaliar como Israel se comportou nesta guerra. As regras de engajamento para as FDI foram suficientemente rigorosas? Os militares buscaram diligentemente as queixas de crimes de guerra? O Hamas pode ter a maior parte da culpa por iniciar esta guerra, mas os israelenses devem perguntar se alguma é nossa.

O uso de escudos humanos pelo Hamas, o que o grupo nega, também causou extensas baixas. Um colchão espesso de corpos vivos acima do solo isolou a infraestrutura militar subterrânea do grupo. O direito internacional proíbe categoricamente qualquer uso de escudos humanos, mas oferece pouca orientação para ajudar a determinar quantas baixas são excessivas ao tentar destruir alvos protegidos por escudos humanos. A questão é mais profunda: Israel ou qualquer nação que luta contra uma força militar tão entrelaçada com a população civil deve destruir todos os alvos militares disponíveis quando o dano colateral é tão grande?

Uma questão semelhante surge ao considerar a integração de sistemas assistidos por I.A. (Inteligência Artificial) por Israel em sua guerra. Esses sistemas ajudaram a identificar potenciais alvos militares em Gaza a uma taxa exponencialmente mais rápida e maior do que em conflitos anteriores. Mais alvos significam mais mortes, nenhuma das quais é inevitavelmente excessiva ou ilegal, mas levanta uma questão crucial: Todos eles eram necessários?

Abordar essas questões francamente requer fóruns públicos para atrair políticos, jornalistas, educadores, pais e cidadãos preocupados. As respostas não virão facilmente. Escolas e universidades em Israel terão em breve que pensar sobre como ensinaremos sobre esta guerra. Embora os currículos estejam principalmente nas mãos do ministério da educação, os cidadãos preocupados devem pressionar as autoridades governamentais a incentivar estudantes e professores a escrutinizar nossa conduta na guerra.

A informação é um componente crucial deste acerto de contas. O governo deve permitir que uma comissão oficial de inquérito avance, e precisamos que as investigações internas das FDI se tornem públicas. Caso contrário, nossos esforços ficarão aquém do esperado. As FDI objetaram à continuação da guerra no início de 2025, e mais dados iluminarão por que acreditavam nisso e por que foram contrariadas. Se estiverem à altura da ocasião, os investigadores podem nos dizer o que os comandantes pensavam sobre a necessidade de operações específicas, os detalhes de mortes por fogo amigo e operacionais e, esperançosamente, oferecer uma espiada na caixa-preta do direcionamento por I.A.

“Matar, matar, matar” não é um resultado inevitável da guerra. Com um frágil cessar-fogo em vigor, muitos voltaram os olhos para a reconciliação distante entre israelenses e palestinos. Não é por acaso que o processo é frequentemente chamado de “verdade e reconciliação”. Encarar a verdade está entre os próximos passos necessários se quisermos lidar com esta guerra horrível e encontrar a paz.

Michael L. Gross é professor de ciência política na Universidade de Haifa. Ele é autor de “Military Medical Ethics in Contemporary Armed Conflict” e “The Ethics of Insurgency”.

Venda seus filhos: A América Latina se move para a direita

É impressionante a profundidade com que a direita contemporânea da América Latina absorveu o neoliberalismo. Gerações anteriores adotaram uma gama de filosofias econômicas, dependendo do que melhor atendia aos seus interesses no momento. A questão hoje é como tornar suas outras preocupações compatíveis com a supremacia do mercado.

Tony Wood


Vol. 47 No. 20 · 6 November 2025

La cuarta ola: Líderes, fanáticos y oportunistas en la nueva era de la extrema derecha
por Ariel Goldstein.
Marea Editorial, 168 pp., Arg$24,900, setembro de 2024, 978 987 823 055 9

Contra la amenaza fantasma: La derecha radical latinoamericana y la reinvención de un enemigo común
por Farid Kahhat.
Planeta, 170 pp., S/. 39.90, fevereiro de 2024, 978 612 5037 28 2

Historia mínima de las derechas latinoamericanas
por Ernesto Bohoslavsky.
El Colegio de México, 269 pp., Mex$270, fevereiro de 2023, 978 987 826 759 3

Os últimos sete anos trouxeram uma série de sucessos para a direita na América Latina. Em outubro de 2018, Jair Bolsonaro venceu a presidência brasileira. Em junho do ano seguinte, Nayib Bukele chegou ao poder em El Salvador e, em novembro daquele ano, a direita boliviana aproveitou-se de uma crise eleitoral para destituir Evo Morales. No Peru, após a vitória apertada do esquerdista Pedro Castillo na presidência em 2021, forças de direita no Congresso paralisaram seu governo e, dezoito meses depois, após sua tentativa fracassada de dissolver o parlamento, o destituíram do cargo; desde então, mantêm o controle da política do país. No Chile, a extrema direita teve um bom desempenho nas eleições de 2021, mobilizou-se com sucesso para rejeitar a proposta de nova constituição do país em 2022 e dominou as eleições para o órgão encarregado de elaborar uma carta magna alternativa em 2023. A vitória surpreendente de Javier Milei na Argentina no final de 2023 confirmou e consolidou a guinada à direita na região.

Este ano trouxe mais uma grande vitória para a direita: o colapso do Movimento ao Socialismo na Bolívia pôs fim a quase vinte anos de domínio da esquerda, abrindo caminho para a vitória do candidato de centro-direita Rodrigo Paz na presidência, enquanto partidos de direita e centro-direita conquistaram o controle de ambas as casas da Assembleia Legislativa. Na Colômbia, a coalizão de esquerda de Gustavo Petro enfrenta dificuldades, e as eleições parlamentares e presidenciais estão previstas para o próximo ano. No Chile, três dos quatro principais candidatos à iminente eleição presidencial são de extrema-direita. As pesquisas mostram José Antonio Kast, o candidato de extrema-direita que quase venceu há quatro anos, em segundo lugar, atrás da candidata da coalizão de esquerda, Jeannette Jara, do Partido Comunista do Chile; em terceiro lugar está Evelyn Matthei, da União Democrática Independente (UDI), partido criado na década de 1980 pela ditadura de Pinochet. Kast rompeu com a UDI em 2016 por considerá-la moderada demais. Em quarto lugar está Johannes Kaiser, um libertário que rompeu com o novo partido de Kast por considerá-lo moderado demais.

O que explica essa ascensão da direita? Em certa medida, ela se conforma a um padrão global exemplificado nos EUA por Trump, na Ásia por Modi e Duterte, e na Europa por Orbán, Le Pen, Meloni e Farage. Há paralelos entre esses populistas de direita e a direita contemporânea da América Latina: compartilham uma hostilidade ao “globalismo” e à “ideologia de gênero”, além da convicção de que o “marxismo cultural” se apoderou da maioria dos meios de comunicação e universidades do mundo. Assim como seus pares em outros lugares, a direita latino-americana também explorou eficazmente as mídias sociais para intensificar a polarização e a indignação.

Essas são mais do que meras semelhanças superficiais: refletem conexões e alianças reais. O clã Bolsonaro e Milei cortejaram Trump assiduamente; Em um comício em fevereiro, antes da saída de Elon Musk da DOGE, Milei apareceu no palco com Musk e lhe entregou uma motosserra como símbolo de sua intenção de cortar gastos. Mas para a direita latino-americana, um conjunto de conexões tem sido especialmente significativo. Como o sociólogo argentino Ariel Goldstein demonstrou em seu livro de 2022, La reconquista autoritaria (‘A Reconquista Autoritária’), e continua a examinar em La cuarta ola (‘A Quarta Onda’), o intermediário mais crucial é a extrema-direita espanhola, cuja infraestrutura midiática e plataformas públicas permitiram que direitistas latino-americanos forjassem conexões entre si, bem como com seus pares europeus.

O apego ao passado imperial da Espanha não é novidade para a direita na América Latina. Desde a independência, suas elites lançam olhares nostálgicos através do Atlântico, ansiando pelo sistema colonial que garantia seus privilégios e defendendo a hispanidade como um baluarte cultural contra a barbárie das massas não europeias. A nova direita na antiga metrópole – em particular o partido Vox, fundado em 2013 – celebra abertamente a história imperial da Espanha. O Vox também desempenhou um papel importante na construção de redes globais de extrema-direita por meio do Foro Madrid, um encontro internacional semelhante à Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC) dos EUA. A própria CPAC realizou encontros no Brasil (2019-2025), México (2022) e Argentina (2024). Após sua fundação na Espanha em 2020, o Foro Madrid realizou eventos subsequentes em Bogotá, Lima, Buenos Aires e Assunção.

Goldstein demonstra que as conexões facilitadas pelo Vox com figuras do Leste Europeu, como Orbán e Kaczyński, deram novo fôlego ao anticomunismo, já desgastado, da direita latino-americana, infundindo-o com um triunfalismo pós-Guerra Fria. O Vox uniu-se à direita venezuelana na adoção do termo "narcocomunismo", que combina a velha caça às bruxas anticomunista com alegações de criminalidade. Deputados do Vox no Parlamento Europeu têm exagerado a ameaça representada por governos "narcocomunistas" de centro-esquerda na América Latina, numa tentativa de inclinar ainda mais a política externa da UE para a direita.

A proeminência dessas conexões espanholas é uma característica que distingue a direita latino-americana. (Imagine se, digamos, Nigel Farage fosse o elo de ligação da direita em todo o antigo Império Britânico.) Em Contra la amenaza fantasma (Contra a Ameaça Imaginária), o comentarista político peruano Farid Kahhat aponta para outra diferença: a hostilidade aos migrantes é uma característica menos central da direita contemporânea da América Latina do que em outros lugares. Políticos como Milei e Kast expressaram sentimentos xenófobos, e os migrantes – da Venezuela, da América Central e do Equador, bem como de outros lugares – certamente sofrem discriminação e repressão estatal. Mas eles não se tornaram alvos tão proeminentes do discurso de direita como na Europa ou nos EUA. E embora os apoiadores de Bolsonaro tenham reivindicado a bandeira brasileira e o uniforme da seleção nacional de futebol como seus símbolos, em geral o nacionalismo não tem a mesma valência de sangue e solo na América Latina como na Europa, nem a mesma arrogância colonialista agressiva.

O ressurgimento da direita na América Latina é ainda mais notável quando se considera o que veio antes. Entre 1998 e 2014, candidatos de esquerda venceram um total de 32 eleições em 13 países diferentes, de Hugo Chávez na Venezuela a Dilma Rousseff no Brasil. No final de 2011, no auge da Onda Rosa, cerca de três quintos da população da região viviam em países governados por governos de esquerda eleitos. Nenhum outro lugar do mundo vivenciou algo semelhante. Para Kahhat, isso por si só significa que a direita latino-americana “não é simplesmente a expressão regional de um fenômeno global”. Sua ascensão recente é, antes de tudo, um movimento para reverter as consequências do longo domínio eleitoral da esquerda.

Mas isso ainda nos deixa com algumas perguntas. Por que novos grupos de extrema-direita estão liderando a reversão da Onda Rosa, em vez dos partidos tradicionais de direita? A Onda Rosa começou a perder força após 2014, com o fim do período de alta sustentada dos preços das commodities. Inicialmente, um tipo familiar de conservador se beneficiou da popularidade decrescente da esquerda: o bilionário Sebastián Piñera venceu a presidência do Chile em 2010 e novamente em 2018; na Argentina, Mauricio Macri, do partido de centro-direita Propuesta Republicana, chegou ao poder em 2015; no Peru, em 2016, o ex-economista do FMI e do Banco Mundial, Pedro Pablo Kuczynski, derrotou Keiko Fujimori, uma populista de direita. No Brasil, Rousseff sofreu impeachment e foi substituída por seu vice-presidente, Michel Temer, do Movimento Democrático Brasileiro, um amplo partido de centro-direita fundado na década de 1960 como oposição oficial durante a ditadura militar.

Mas, desde 2018, a extrema-direita ganhou força. Quando Bolsonaro venceu a presidência naquele ano, seu Partido Social Liberal passou de ter apenas uma cadeira no Congresso para se tornar o segundo maior partido, com 52. Paralelamente a sucessos eleitorais como os de Bolsonaro, Bukele e Milei, a direita adotou uma série de estratégias, desde golpes de Estado declarados, como na Bolívia, até bloqueios institucionais coordenados, como no Peru. Para Kahhat, o momento e a intensidade dessa onda podem ser explicados, em grande parte, por um sentimento geral de rejeição aos governos vigentes após a pandemia de Covid-19. A América Latina registrou algumas das maiores taxas de mortalidade do mundo (o índice do Peru, de 660 mortes por 100 mil habitantes, era quase o dobro do do Reino Unido). Isso foi uma demonstração prejudicial da incapacidade do Estado, e faz sentido que tenha havido uma reação política, especialmente considerando a recessão econômica subsequente. Mas mesmo que a pandemia explique a intensificação da guinada à direita na América Latina, ela não explica por que essa guinada começou em 2018, dois anos antes da Covid-19.


Outra forma de abordar a questão é perguntar o quão recente é, de fato, a extrema-direita latino-americana e qual a sua posição em relação a outras formas de conservadorismo na região. Ela representa um projeto político novo e singular, ou estamos diante do velho conservadorismo com novas roupas? A resposta simples e insatisfatória é: ambas. Há algumas inovações óbvias e surpreendentes, do anarco-libertarianismo de Milei à combinação de encarceramento em massa e assédio nas redes sociais de Bukele (que poderíamos chamar de modelo "influenciar e punir"). Mas o ressurgimento da direita também envolveu o retorno de alguns temas já bastante familiares, seja a celebração, por Bolsonaro, da brutal repressão à esquerda pela ditadura militar brasileira, seja o racismo anti-indígena explícito do regime de Jeanine Añez na Bolívia.

Para compreender como esses aspectos do pensamento e da prática da direita se inter-relacionam, é preciso olhar além da ascensão e queda de partidos específicos. Como argumenta o historiador argentino Ernesto Bohoslavsky em Historia mínima de las derechas latinoamericanas, os partidos políticos sempre foram apenas uma das muitas formas que a direita assumiu – e nem sempre a mais importante. Bohoslavsky define inicialmente a direita latino-americana como “as organizações especificamente políticas que defendem ativamente formas desiguais de distribuição de bens, oportunidades e reconhecimento entre as classes sociais, mas também entre homens e mulheres e entre gerações”. Contudo, ao longo do livro, ele adota uma abordagem diferente: em vez de encarar a direita como uma tendência política organizada que incorpora um conjunto específico de ideias, ele a vê como a expressão dos interesses das elites. Dependendo do contexto, as elites podem usar diferentes formas de poder para manter ou restaurar essas desigualdades, da força militar à coerção econômica, da persuasão ideológica à autoridade política. Os partidos políticos são a manifestação mais óbvia, mas a direita também pode recorrer a outras “fontes de poder social” – conceito derivado da sociologia histórica de Michael Mann – quando necessário.

Isso explica o substantivo no plural no título de Bohoslavsky: ele vê a direita latino-americana como uma tradição heterogênea, adotando diferentes estratégias e ideias ao longo do tempo. No âmbito político, o eleitoralismo alternou-se com ditaduras; na economia, a direita adotou, em diferentes momentos, o liberalismo laissez-faire, o desenvolvimentismo liderado pelo Estado, o corporativismo e o neoliberalismo; na cultura, a centralidade do nacionalismo e da religião oscilou, embora o firme anticomunismo tenha sido um tema constante.

Bohoslavsky inicia sua narrativa no final do século XIX. A maioria das histórias da direita começa com a Revolução Francesa, o evento que nos deu a terminologia de direita e esquerda, e que geralmente é considerado o inaugural da batalha entre conservadorismo e liberalismo. Mas, para Bohoslavsky, as cisão entre liberais e conservadores que surgiram na América Latina após a independência não desafiaram tanto o poder estabelecido, mas sim colocaram facções rivais das elites umas contra as outras. Talvez isso seja uma simplificação excessiva: um conjunto substancial de estudos acadêmicos demonstrou que o liberalismo atraiu considerável apoio popular. Mas os defensores de direita do liberalismo na América Latina sempre nutriram uma profunda desconfiança em relação às massas e, historicamente, estiveram muito mais comprometidos com os princípios econômicos do liberalismo do que com quaisquer impulsos democratizantes.

O liberalismo de direita, predominante em grande parte da região no final do século XIX, buscava impulsionar as exportações e atrair investidores estrangeiros, preservando o regime oligárquico existente. Com as Revoluções Mexicana e Russa, contudo, surgiram novos desafios que tanto liberais quanto conservadores da América Latina lutaram para conter. Bohoslavsky vê a década de 1920 como um período de experimentação política, no qual a direita expandiu seu repertório para além das formas tradicionais de domínio oligárquico. Isso incluiu o uso da Guarda Branca, forças paramilitares, para reprimir o descontentamento camponês no campo. A década de 1920 também testemunhou a promoção do "Medo Vermelho", muito antes da formação de partidos comunistas de fato. (Bohoslavsky cita o exemplo de uma greve de 1922 no Equador, atribuída a agitadores comunistas e violentamente reprimida; o Partido Socialista Equatoriano só surgiu em 1926.)

A classe dominante se viu cada vez mais confrontada com a questão de como canalizar ou conter a política de massas. Na década de 1930, em meio à turbulência da Grande Depressão, a solução mais comum encontrada foi o autoritarismo: entre 1930 e 1937, ocorreram golpes de Estado ou levantes liderados por militares na Argentina, Brasil, Guatemala, Peru (duas vezes), Chile, Uruguai, Cuba e Bolívia. Essa foi uma época de regimes autoritários em grande parte da região, desde o longo governo de Juan Vicente Gómez na Venezuela (1908-1935) até o controle férreo de Jorge Ubico na Guatemala (1931-1944) ou o início da dinastia Somoza na Nicarágua. Foi também a era do fascismo na Europa, e a América Latina presenciou movimentos semelhantes de extrema direita, do Movimento Nacional Socialista do Chile aos Camisas Douradas do México. Contudo, esses eram geralmente atores pequenos e marginais. O Brasil foi o único país onde um movimento fascista de porte considerável se enraizou: a Ação Integralista Brasileira, que no final da década de 1930 contava com cerca de 400 mil membros. Não houve uma reformulação fascista da velha ordem como na Alemanha, Itália ou Espanha. Os pilares tradicionais do poder da elite, especialmente o exército, mostraram-se suficientemente firmes.

Uma breve abertura democrática após a Segunda Guerra Mundial viu os partidos comunistas conquistarem 10% dos votos no Brasil e no Chile, levando a leis de censura e proibições, à medida que os líderes latino-americanos adotavam a agenda da Guerra Fria de Washington. Mas Bohoslavsky argumenta que o discurso “antitotalitário” da Guerra Fria também teve um efeito diferente: da década de 1940 ao início da década de 1960, os conservadores latino-americanos, em princípio, aceitaram o regime democrático e concordaram em trabalhar dentro de uma estrutura constitucional. Este é um dos períodos em que os partidos políticos de direita ganharam influência, e sua eficácia como mecanismo de manutenção do poder passou a ser mais amplamente reconhecida. A direita adaptou-se aos tempos de outras maneiras, aderindo a um amplo consenso em torno da necessidade de um desenvolvimento econômico liderado pelo Estado. Governos de centro-direita supervisionaram políticas de industrialização por substituição de importações e lançaram programas de reforma agrária, ainda que timidamente. Segundo Bohoslavsky, nesse momento a extrema-direita ainda tinha uma presença relativamente pequena. Mas – uma mudança significativa – a direita tradicional tornou-se cada vez mais capaz de contar com aliados externos, especialmente os Estados Unidos, como o garantidor final de seu poder.

A Revolução Cubana de 1959 reacendeu o espectro da mobilização popular. Com o modelo desenvolvimentista perdendo força em muitos lugares, a disposição das elites latino-americanas em tolerar o regime democrático começou a diminuir, mesmo com o aumento das pressões da esquerda. O golpe militar de 1964 no Brasil foi o primeiro de uma nova onda de ditaduras que se estendeu por toda a região até a década de 1980, de Pinochet no Chile à sucessão de juntas na Argentina. Esses regimes não eram apenas mais brutais que seus antecessores; eram também muito mais institucionalizados. Nessa altura, as forças armadas latino-americanas já estavam em grande parte equipadas e treinadas pelos EUA e aderiam à doutrina de segurança nacional americana, que considerava qualquer desafio interno como "subversão" orquestrada externamente. Grupos paramilitares de direita surgiram em muitos lugares nas décadas de 1960 e 1970 como um complemento ao anticomunismo oficial, fornecendo aos regimes novas ferramentas para exercer violência além das forças armadas.

A ruptura com o regime democrático abriu espaço para que ideias de extrema-direita ganhassem terreno, não apenas o anticomunismo histérico dos generais argentinos, mas também o neoliberalismo autoritário dos "Chicago Boys" no Chile. O desmantelamento final do desenvolvimentismo estatal na América Latina levou algum tempo, mas o processo começou sob regimes autoritários. É importante notar que, com algumas honrosas exceções, os partidos tradicionais de direita frequentemente apoiaram esses regimes, minando qualquer distinção rígida entre direita moderada e extrema-direita. À luz sombria da década de 1970, a diferença entre as duas parece ser menos uma questão de princípio do que uma divisão de trabalho.

A atitude complacente de tantos conservadores em relação às ditaduras latino-americanas se voltou contra eles quando esses regimes finalmente caíram na década de 1980. A essa altura, os generais já haviam se mostrado economicamente incompetentes, além de brutais, e seu fervor "antissubversivo" havia perdido sua utilidade. Mas, como afirma Bohoslavsky, a democratização cuidadosamente planejada das décadas de 1980 e 1990 não representou uma derrota para as forças armadas, mas sim um recuo estratégico. Em muitos casos, os partidos políticos formados durante as ditaduras permaneceram atores eleitorais relevantes: a UDI no Chile, o Partido Democrático Social no Brasil e a Alianza Republicana Nacionalista em El Salvador. Com os sindicatos e a esquerda organizada profundamente fragilizados por anos de repressão, o descrédito de grande parte da direita política não resultou em grandes avanços para a causa progressista. O fim das ditaduras na América Latina coincidiu, ao contrário, com a ascensão do neoliberalismo e, em uma amarga ironia histórica, foi em muitos casos a centro-esquerda que adotou a agenda econômica da direita, implementando reformas de livre mercado que incluíram algumas das privatizações mais rápidas e abrangentes do mundo.

O domínio do neoliberalismo na década de 1990 criou as condições para que a direita latino-americana aceitasse novamente as regras democráticas do jogo. Como afirma Bohoslavsky, “eles estavam lidando com democracias neoliberalizadas” – isto é, “regimes nos quais as negociações políticas... e as lutas não representavam riscos para as elites”. Contudo, os impactos socioeconômicos das reformas de livre mercado – aumento da desigualdade e do desemprego, cortes no bem-estar social, diminuição da oferta de serviços sociais – geraram oposição. Em 1989, ocorreram protestos em massa na Venezuela contra as medidas econômicas ditadas pelo FMI; em 1994, os zapatistas lançaram sua rebelião no México no dia em que o Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA) entrou em vigor; quatro anos depois, a vitória de Chávez na Venezuela marcou o início de uma guinada de quinze anos à esquerda na América Latina.

A oposição ao neoliberalismo foi um tema unificador da Onda Rosa e a base de seus sucessos eleitorais. Em contraposição ao Consenso de Washington, termo cunhado pelo economista John Williamson para descrever o pacote padrão de reformas neoliberais, estava o Consenso de Buenos Aires, um manifesto assinado em 2003 pelos presidentes do Brasil e da Argentina, Lula (Luiz Inácio da Silva) e Néstor Kirchner. Contudo, embora os governos da Onda Rosa tenham representado um poderoso desafio ideológico ao neoliberalismo, tiveram muito menos sucesso em traçar um rumo econômico para superá-lo; e, embora tenham reduzido significativamente a desigualdade de renda, não conseguiram implementar mudanças estruturais que transferissem fundamentalmente o poder econômico das elites para as forças dominantes. De trás de suas fortificações, a direita se preparava para lançar sua contraofensiva.

A maioria das análises sobre a recente ascensão da direita baseia-se na distinção entre uma direita “radical” ou “extrema” e uma direita “tradicional”, sendo esta última atuante por meio de estruturas democráticas institucionais e a primeira cética em relação a elas ou rejeitando a democracia por completo. Contudo, a análise histórica mais abrangente de Bohoslavsky demonstra que essa distinção não é tão simples. Embora os meios políticos e institucionais utilizados por diferentes setores da direita tenham variado ao longo do tempo, assim como o tom e o conteúdo do discurso direitista, o propósito primordial – a defesa dos interesses das elites – permaneceu constante. No entanto, os desafios impostos a esses interesses mudaram ao longo das décadas e, à luz da análise de Bohoslavsky, é aí que devemos buscar explicações para a recente guinada da direita para a extrema-direita.

Embora o desafio econômico representado pela Onda Rosa tenha sido significativo, para Bohoslavsky foi o desafio político que moldou predominantemente a resposta da direita. Na década de 2000, governos em toda a região contestaram a premissa neoliberal fundamental de que os mercados deveriam determinar a distribuição de bens. Mas também introduziram ou planejaram legislação progressista sobre aborto, casamento entre pessoas do mesmo sexo, educação e direitos indígenas. Em alguns casos – Argentina, Brasil, Chile – governos de esquerda se engajaram em “políticas da memória”, lançando comissões da verdade e inquéritos sobre os crimes das ditaduras militares. Contra tudo isso, a direita contemporânea busca não apenas restaurar a supremacia do mercado, mas também reforçar normas patriarcais e papéis de gênero “tradicionais”, além de defender o histórico “antissubversivo” das ditaduras, clamando pelo que chamam de “memória completa”. Bohoslavsky resume sua agenda como “ordem no mercado, nas ruas e em casa”.

Essa resposta agressiva promete uma reversão mais rápida e completa da Onda Rosa do que a oferecida pelos partidos conservadores mais tradicionais da região, e explica em grande parte o generoso apoio que muitos dos novos partidos de extrema-direita têm recebido. Isso também ajuda a explicar a questão do momento: depois que a direita tradicional falhou em derrotar a Onda Rosa, muitos de seus adeptos começaram a cogitar soluções mais drásticas. Isso inclui figuras-chave do establishment conservador tradicional: foi Macri, que não conseguiu erradicar o peronismo na Argentina durante sua presidência de 2015 a 2019, quem intermediou a aliança de direita que levou Milei à vitória em 2023.

Os governos da Onda Rosa usaram o Estado como instrumento para reverter as desigualdades geradas pelo neoliberalismo. Sob o pretexto da austeridade, a direita buscou tornar esse instrumento inutilizável, restringindo a capacidade redistributiva do Estado – primeiro cortando orçamentos e, depois, no caso de Milei, eliminando grandes porções do aparato estatal. Essa animosidade contra o Estado se reflete no peso crescente do libertarianismo dentro do espectro ideológico da direita. Anteriormente uma tendência marginal na América Latina, o movimento ganhou defensores expressivos como Milei e influenciadores online, como Agustín Laje na Argentina e Johannes Kaiser no Chile, e atraiu financiamento significativo de bilionários, incluindo Eduardo Eurnekian, um dos principais apoiadores de Milei.

Os think tanks libertários também desempenharam um papel importante, especialmente aqueles aliados à Rede Atlas, criada por Antony Fisher, ex-conselheiro de Margaret Thatcher. Das quinhentas organizações afiliadas que a Rede Atlas afirma ter em todo o mundo, 120 estão na América Latina. (Para efeito de comparação, o Sul da Ásia e o Leste Asiático têm apenas 21 cada.) Em seu livro de 2021, Menos Marx, Mais Mises, a acadêmica brasileira Camila Rocha explorou o papel desses think tanks em seu país, descrevendo a confluência resultante da Escola Austríaca de Economia com outras correntes do pensamento de direita como "ultraliberalismo conservador". O rótulo também captura a agenda híbrida de Milei: um libertarianismo radical combinado com elogios à ditadura militar, desregulamentação dos mercados e contestações aos direitos reprodutivos das mulheres. Resta saber quão estável será essa mistura ideológica; Kahhat cita uma entrevista de 2022 na qual Milei se esquiva da pergunta sobre se concorda com a sugestão de Murray Rothbard em Por uma Nova Liberdade (1973) de que as pessoas deveriam ter permissão para vender seus próprios filhos – talvez levando a ideia de “valores familiares” um pouco ao pé da letra. Por ora, as óbvias contradições entre os diferentes componentes da direita foram suavizadas pelo projeto comum de reverter a Onda Rosa. E, como Rocha e outros, como Quinn Slobodian, apontaram, a Escola Austríaca de Economia tinha de fato um forte componente moral, frequentemente considerando os tipos de coletividade caros ao pensamento conservador – a família, a nação, a etnia – como cruciais para o bom funcionamento do mercado.

As preocupações morais não são novidade para a direita latino-americana, é claro. Sua veemente oposição ao que chama de "ideologia de gênero" está em consonância com a antiga defesa conservadora da família nuclear, e grande parte de seu anticomunismo foi e é uma reação ao laicismo da esquerda. Mas o que parece diferente agora é que sua agenda moral foi permeada por imperativos de mercado. Como Bohoslavsky deixa claro, versões anteriores da direita tinham uma forte tendência antimaterialista, enfatizando o espiritual em detrimento das questões terrenas. Ele cita o reacionário argentino Miguel Cané, que em 1877 já lamentava o declínio de seus compatriotas no sórdido mundo do comércio: "Nossos pais eram soldados, poetas e artistas. Nós somos lojistas, vendedores ambulantes e especuladores". É improvável que a atual safra de direitistas se queixasse de ser incluída nesta última categoria (embora a promoção e posterior retirada do apoio de Milei a uma criptomoeda chamada $LIBRA tenha causado o primeiro grande escândalo de sua presidência).


É impressionante a profundidade com que a direita contemporânea da América Latina absorveu o neoliberalismo. Gerações anteriores adotaram uma gama de filosofias econômicas, dependendo do que melhor atendia aos seus interesses no momento. A questão hoje é como tornar suas outras preocupações compatíveis com a supremacia do mercado. Como afirma Bohoslavsky, “essa extrema direita não quer substituir a ordem neoliberal, sobrepujar as instituições democráticas ou oferecer um futuro alternativo como o fascismo clássico, mas sim se tornar uma garantidora mais eficiente e autoritária de... uma ordem moral, social e econômica que supostamente está ameaçada”.

As ameaças percebidas a essa ordem variam de oponentes políticos e tendências sociais reais a ameaças infladas ou imaginárias, como indica o título do livro de Kahhat. Em sua fundação, em 2020, o Foro Madrid se identificou como o contrapeso de direita a duas organizações internacionais de esquerda, o Foro de São Paulo e o Grupo Puebla. Ambos os espaços tiveram um significado simbólico como locais de encontro dos líderes da Onda Rosa, mas desempenharam um papel insignificante no estabelecimento de uma agenda política comum – muito menos como palco para planejar uma tomada de poder comunista nas Américas, como a direita aparentemente acredita. Talvez esses fóruns de diálogo diplomático tenham sido o melhor que conseguiram criar como antagonistas sinistros, na ausência de um movimento comunista internacional de fato. Na verdade, a imagem que o Foro Madrid projeta dessas organizações é mais precisa como um autorretrato invertido: um esforço bem financiado e coordenado internacionalmente para elaborar uma agenda ultraconservadora para toda a região, que reimporia a “ordem” em nome da “liberdade”.

Talvez a característica mais desconcertante da direita latino-americana contemporânea seja sua adesão confiante à política eleitoral. Como o relato de Bohoslavsky deixa claro, o dilema recorrente da direita ao longo do século XX foi como garantir o consentimento da maioria para um sistema de governo que continuaria a beneficiar uma pequena minoria. A resposta mais frequente era não perguntar: afinal, por que se dar ao trabalho de realizar eleições, muito menos construir uma hegemonia política duradoura, quando se pode simplesmente mobilizar o exército? A direita atual optou – por ora – por contestar os sucessos da Onda Rosa na arena política, embora esteja claramente disposta a recorrer a outros métodos quando perde, como demonstra a fracassada insurreição de janeiro de 2023 pelos apoiadores de Bolsonaro. (Milei chegou a contestar os resultados das primárias que venceu em agosto de 2023, o que sugere que o desejo de impugnar o processo democrático é profundo.) Em meio ao amplo descrédito dos partidos existentes, a direita encontrou caminhos para a vitória eleitoral com candidatos “outsiders” e com novas formações: La Libertad Avanza, de Milei, ou Nuevas Ideas, de Bukele. Em cada caso, os vencedores atraíram eleitores muito além da base social tradicional da direita.

Isso, por sua vez, pode ser apenas um sintoma de transformações sociais mais profundas que ocorreram na América Latina, provocadas pelo neoliberalismo e apenas parcialmente retardadas ou desviadas pela Onda Rosa. Empregos cada vez mais precários, uma longa ofensiva contra o movimento sindical, a lenta degradação dos sistemas de bem-estar social, a urbanização rápida, porém em grande parte informal, e a desigualdade crescente – tudo isso desagregou muitas das coletividades por meio das quais as pessoas antes davam sentido às suas vidas, produzindo um eleitorado fragmentado que se mostrou terreno fértil para a direita. Durante grande parte de sua história, a esquerda latino-americana depositou suas esperanças no “povo”, mas Bohoslavsky questiona se o longo reinado do neoliberalismo eliminou esse termo como um significante político coerente. Ele também levanta uma possibilidade mais sombria: a de que as mudanças socioeconômicas das últimas décadas tenham permitido à direita moldar sua própria versão do “povo”, fornecendo uma base sólida para os tipos de autoritarismo que antes eram impostos pela força. Nessa lógica, figuras como Bolsonaro, Bukele e Milei representam tanto o ressurgimento das tradições de direita da região quanto presságios sombrios do que está por vir.

Tony Wood leciona história na Universidade do Colorado em Boulder. "Russia without Putin: Money, Power and the Myths of the New Cold War" foi publicado pela Verso em 2018. "Radical Sovereignty: Debating Race, Nation and Empire in Interwar Latin America" ​​tem previsão de lançamento para 2026.

Entre a ralé: Multidões no início da Idade Média

Juntamente com sua terminologia, os romanos transmitiram à Europa do início da Idade Média a crença de que as multidões eram uma importante fonte de validação. Hordas de admiradores atestavam a santidade das relíquias. As massas adoradoras confirmavam a legitimidade de um governante.

Pablo Scheffer

London Review of Books

Vol. 47 No. 20 · 6 November 2025

Em 859, um grupo de camponeses das terras ao redor do Sena pegou em armas contra os invasores vikings que assolavam a costa francesa. Foi uma tentativa de resistência bastante desesperada. "Eles lutaram bravamente", escreveu o cronista carolíngio Prudêncio sobre a batalha que se seguiu, mas foram "facilmente mortos". Não mortos pelos vikings, porém: as elites locais ficaram tão alarmadas com a revolta que decidiram sufocá-la elas mesmas. (Prudêncio demonstra grande simpatia pelo que chama de vulgus promiscuum, mas o acusa de ter agido "imprudentemente".) A história oferece uma visão sobre o que Shane Bobrycki chama de "regime de multidões" do início da Idade Média, a maneira como o comportamento coletivo era organizado e representado. Diante da escolha entre a ameaça dos vikings e a ameaça de uma turba, os nobres francos escolheram os vikings. Contudo, como Bobrycki destaca, as multidões raramente figuram nos relatos convencionais do período. Após a queda de Roma, a população despencou, as cidades se esvaziaram e, como frequentemente se afirma, as reuniões públicas praticamente cessaram. Bobrycki propõe-se a contestar este último ponto. "As fontes do início da Idade Média estão repletas de multidões", argumenta ele. "Só que não do tipo que os historiadores se acostumaram a procurar."

A demografia é um aspecto particularmente obscuro da história do início da Idade Média, mas sabemos que entre 500 e 1000 houve uma tendência de declínio populacional e desurbanização, resultado de um clima degradante (o período frio e árido entre o inverno vulcânico de 536 e 660 é por vezes chamado de Pequena Idade do Gelo da Antiguidade Tardia), guerras contínuas e uma série de epidemias de peste. Novas pesquisas sugerem uma ligação entre as condições mais severas e os surtos de doenças, à medida que a peste se alastrava por comunidades já fragilizadas pela escassez de alimentos e pela crise social.

Alguns lugares foram mais afetados do que outros. "Cidades [jazem] em ruínas", escreveu o Papa Gregório I no final do século VI, "fortalezas derrubadas, campos devastados; a terra voltou à natureza". No século VII, o Coliseu podia acomodar toda a população de Roma duas vezes. Os palácios no Monte Palatino estavam lentamente se deteriorando; as grandes igrejas antigas serviam a congregações com uma fração do seu tamanho original. O que outrora fora uma metrópole com mais de um milhão de habitantes havia encolhido para cerca de trinta mil.

Por toda a Europa, os edifícios estavam vazios. O escritor do século VIII, Paulo, o Diácono, descreveu Metz como "abundante em multidões", mas também observou que seu antigo anfiteatro havia sido "entregue a serpentes selvagens". Bath, como retratada no poema em inglês antigo "A Ruína", estava praticamente abandonada: "Hrofas sind gehrorene, hreorge torras/hringeat berofen, hrim on lime" ("Telhados desabados, torres arruinadas/o portão circular destruído, geada sobre a argamassa"). Os edifícios romanos em ruínas sugerem um passado tão grandioso e distante que o narrador do poema os imagina como enta geweorc, obra de gigantes. As paisagens em outros poemas em inglês antigo são igualmente desoladas. O narrador de "O Andarilho" lamenta a morte de seus parentes enquanto vagueia "sem amigos" pela região selvagem; São Guthlac permanece sozinho em seu eremitério nos pântanos; Heorot, o salão de hidromel onde Beowulf banqueteia antes de lutar contra Grendel, ergue-se no meio de um brejo. Os leitores desses poemas podem se surpreender ao saber que a Inglaterra do início da Idade Média tinha cidades. York, que fora uma cidade-guarnição romana, floresceu como um entreposto comercial (ou wic, em inglês antigo). Às margens do Tâmisa, cerca de um quilômetro e meio rio acima da antiga Londinium, ficava Lundenwic, um centro movimentado com milhares de habitantes, no que hoje é Aldwych (‘Old Wic’). Mas essas eram as exceções. Entre os séculos II e VII, o número de assentamentos romanos ocupados nas terras baixas da Grã-Bretanha e no norte da França caiu pela metade; na Itália central, em até quatro quintos.

Bobrycki analisou os registros desse declínio populacional em busca de evidências de qualquer tipo de aglomeração. Às vezes, ele exagera: é difícil concordar que as "multidões de animais" que vagavam pelos pastos da Europa medieval ou os registros históricos mantidos pelos mosteiros possam ser considerados multidões. Ele não precisava ter ampliado tanto o escopo, pois, no início da Idade Média, as pessoas se reuniam, como sempre fizeram, por diversos motivos. A colheita ou o reparo de diques e valas exigiam muitas mãos. Exércitos de pequeno porte travavam guerras de pequeno porte. Monarcas e nobres cercavam-se de comitivas; camponeses se reuniam em igrejas e assembleias locais; monges e freiras viviam em comunidade em ordens religiosas. Em mercados e feiras, mercadorias eram negociadas, informações eram trocadas e as pessoas se divertiam. Os grandes projetos de construção desse período – Lindisfarne, o Dique de Offa – exigiam um grande número de trabalhadores. É difícil estabelecer números exatos, mas acredita-se que a construção do Dique de Offa tenha exigido cinco mil homens. No outono de 793, Carlos Magno recrutou uma "multidão de homens" para um grande projeto de escavação de um canal entre o Reno e o Danúbio. (O projeto acabou fracassando devido ao terreno pantanoso e ao mau tempo implacável.)

Em Crowds and Power (1960), Elias Canetti traçou uma distinção entre o que chamou de multidões "abertas" e "fechadas". Multidões abertas são o que geralmente imaginamos quando falamos de multidões: ocasiões espontâneas em que as pessoas se reúnem com um propósito comum, ainda que vago, suspendendo temporariamente a ordem normal das coisas. Multidões fechadas, por outro lado, são encontros planejados com um objetivo definido. Elas solidificam, em vez de perturbar, as hierarquias sociais existentes. Uma das razões pelas quais a Alta Idade Média tende a não figurar nas histórias das multidões, sugere Bobrycki, é que as reuniões nesse período eram predominantemente fechadas. Multidões como a que se formou no Sena eram raras – representavam um desafio logístico e provocavam represálias brutais. A formação de assembleias seguia o que Bobrycki chama de “padrões previsíveis”: colheitas no final do verão, caçadas no outono, festivais religiosos no inverno e na primavera, campanhas militares e assembleias seculares no início do verão.

No entanto, as reuniões ainda podiam ser ocasiões para resistência popular. Camponeses que se reuniam no lugar ou na hora errada, em números inesperados, ou que se recusavam a se reunir, minavam o status quo. Na década de 750, por exemplo, o rei lombardo Desidério concedeu o vale de Trita – um recanto remoto aos pés dos picos dos Apeninos centrais – aos monges de seu mosteiro local. Os monges pensaram que a doação incluía os camponeses do vale e começaram a exigir aluguel e trabalho. Os camponeses se recusaram. Seguiu-se uma longa disputa, na qual os monges acusaram os camponeses de invadir suas terras. Mas gerações de camponeses resistiram; Sua forma de ação coletiva era fugir para as montanhas sempre que os monges apareciam. Um acordo ainda não havia sido alcançado quando, 120 anos e nove processos judiciais depois, o mosteiro foi saqueado por um exército muçulmano.

Na Normandia, por volta da virada do milênio, os camponeses descontentes adotaram uma abordagem mais direta. Insatisfeitos com os privilégios senhoriais sobre as florestas e os cursos d'água, eles pararam de trabalhar, "incitaram inúmeras mini-assembleias e decidiram viver segundo seus próprios desejos". Os camponeses elegeram representantes e os enviaram à assembleia provincial para apresentar seu decreto de autonomia coletiva. O resultado esclarece a razão pela qual os camponeses de Trita escolheram seu método indireto de resistência: o duque mandou os delegados de volta com as mãos e os pés decepados. "Tendo visto isso", observou ironicamente um cronista local, "os camponeses, deixando de lado suas reuniões, voltaram aos seus arados".

As igrejas abrigavam o tipo de encontros organizados mais comumente associados ao período. É impossível dizer com que frequência o camponês médio ia à igreja, embora Bobrycki sugira que "a maioria dos leigos talvez não comungasse mais de três vezes por ano". Certamente, os legisladores do início da Idade Média se esforçaram para aumentar a frequência. Mesmo para aqueles que não frequentavam a missa regularmente, as igrejas eram centrais para a vida comunitária. Eram marcadores de identidade local, locais para diversos tipos de reuniões públicas e lugares onde os pobres recebiam esmolas. Bobrycki evoca com maestria a imponência das igrejas: “Centenas de velas acesas... O aroma de incenso ou flores cortadas... Grandes afrescos e mosaicos, tecidos raros entre as divisórias, o altar isolado com relíquias abaixo, sob uma abside mostrando as terríveis multidões do Juízo Final”. Mas mesmo as mais grandiosas igrejas do início da Idade Média não eram espaços cavernosos. Eram divididas de maneiras que reforçavam as hierarquias sociais: cortinas e colunas separavam os membros da congregação por classe; afrescos retratavam multidões celestiais em fileiras cerradas. Homens e mulheres recebiam a comunhão separadamente, enquanto os pobres ficavam na entrada da igreja ou na antecâmara pedindo esmolas. No século IX, o Papa Pascoal I redesenhou Santa Maria Maior para que não fosse perturbado pelo som de mulheres entrando no edifício.

Apesar de todas essas tentativas de estruturação, as multidões religiosas ainda podiam ser imprevisíveis. No século V, Agostinho queixou-se de que uma multidão inesperadamente grande e "bastante inquieta" tinha vindo ouvi-lo pregar. Em meio à comoção, ele teve que ler uma passagem dos Evangelhos duas vezes, "pois minha voz é tal que só se propaga em grande silêncio". Na década de 840, dois homens vestidos de monges chegaram à igreja de São Benigno, em Dijon, com ossos que alegavam ser relíquias (de qual santo não sabiam dizer). Antes que as autoridades locais decidissem o que fazer com eles, uma multidão de centenas de camponeses – "especialmente mulheres" – formou-se na igreja, agitando-se descontroladamente "como se estivessem sendo espancados" e recusando-se a sair. Bobrycki observa que, apesar das advertências de bispos e padres, os camponeses continuaram a "acender fogueiras, marchar em procissões não autorizadas, reunir-se diante de mágicos, pseudossantos e pseudoprofetas e gritar para a lua durante o eclipse".


Os falantes de latim do início da Idade Média herdaram um tesouro de palavras para descrever diferentes tipos de multidão: populus, caterva, vulgus, conventio, tumultus, societas, contio, grex. Caterva e grex eram ambos usados ​​para descrever tropas de homens, mas caterva originou-se como um termo militar referente a um bando de soldados bárbaros, enquanto grex, que tinha conotações pejorativas, era uma palavra para um rebanho ou manada de animais. No início do século VII, Isidoro de Sevilha discorreu sobre a distinção entre uma ‘multidão’ (multitudo) e uma ‘multidão’ ou ‘turba’ (turba). A primeira era definida por números, a segunda por espaço: ‘Pois poucas pessoas podem formar uma turba em espaços estreitos.’ Essas nuances, no entanto, estavam sendo abandonadas. Alguns escritores usavam turba não apenas para multidões desordenadas, mas também para hostes de anjos e reuniões de monges; Termos militares como legio e cohors perderam sua especificidade e se tornaram sinônimos de "muitos". Até mesmo plebe passou a ser usado simplesmente como uma alternativa a populus.

À medida que as reuniões se tornavam eventos mais organizados, novas palavras se fizeram necessárias. As línguas germânicas herdaram a palavra "thing" (ding em alemão e þing em nórdico antigo), que originalmente se referia a uma assembleia local – o tipo de assembleia onde disputas eram resolvidas e decisões coletivas eram tomadas – mas evoluiu para incluir o tempo ou o local dessas assembleias, as discussões realizadas e os acordos firmados. Um thinghûs ("casa das coisas") passou a significar desde um tribunal até um teatro; um thingâri ("realizador de coisas") poderia ser tanto um pregador quanto um litigante. O substantivo thingatio chegou a entrar no latim através do direito lombardo, onde denotava legitimação pública.

Junto com sua terminologia, os romanos transmitiram à Europa do início da Idade Média a crença de que as multidões eram uma importante fonte de validação. Hordas de admiradores atestavam a santidade das relíquias. As massas adoradoras confirmavam a legitimidade de um governante. Embora as eleições no início da Idade Média estivessem longe de ser democráticas, a aprovação unânime das multidões era uma parte importante do ritual. "Em um mundo sem urnas eletrônicas ou pesquisas de opinião", escreve Bobrycki, "afirmações sobre a vontade coletiva implicavam em performances coletivas". Era comum que os candidatos a cargos públicos acusassem seus rivais de manipulação de multidões. Fócio, patriarca de Constantinopla no século IX, foi perseguido por acusações de que teria adulterado os nomes dos subscritores de seus atos conciliares para inflar seu apoio. Gregório, bispo de Tours, alegou que um de seus rivais ao cargo havia reunido uma "multidão de pobres" para criar clamor.

As multidões eram um recurso escasso e reuni-las exigia planejamento cuidadoso. Quando um grupo de clérigos do século IX, no leste da Frância, precisou de multidões "milagrosas" para provar a autenticidade de suas relíquias recém-adquiridas, eles fizeram questão de desfilar pela região antes de armazená-las na movimentada cidade industrial de Obermühlheim, que renomearam Seligenstadt, ou Cidade Abençoada. O que importava era a ilusão de espontaneidade. Para cada clérigo que portava uma relíquia genuína, porém, havia um vendedor de produtos falsificados. O que as autoridades deveriam fazer nos casos em que as multidões pareciam legitimar os malfeitores? Gregório, de sua sé em Tours, repreendeu um "especialista em maldade" que se vestia com peles e andava por aí se autodenominando Cristo, cometendo roubos em estradas e distribuindo os despojos a suas multidões de seguidores. No século VIII, São Bonifácio escreveu sobre um homem chamado Aldeberto que afirmava ser um apóstolo, vendia suas unhas como relíquias e conquistava "uma multidão de pessoas simples". O que tornava esses eventos tão perturbadores era a sua semelhança com reuniões aprovadas. Acaso o próprio Cristo não havia dito, no Evangelho de Mateus, que “onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, ali estou eu no meio deles”? Num mundo em que as multidões eram vistas como conferindo legitimidade sagrada, espectadores reunidos em torno de pregadores hereges ou relíquias falsas representavam um problema para as autoridades. Escritores do início da Idade Média escreveram polêmicas descartando essas “multidões ruins” como sendo motivadas pelo medo ou enfatizando o envolvimento de mulheres.

Ao final do primeiro milênio, as pressões demográficas diminuíram. O clima tornou-se mais ameno (o “período quente medieval” começou no século X) e, após o século VIII, os surtos de peste praticamente cessaram. Graças, em parte, às melhorias nos métodos agrícolas, as populações se recuperaram e as grandes cidades voltaram a prosperar. Veneza, Ghent e Londres expandiram-se consideravelmente e adquiriram um caráter distintamente urbano. Reuniões espontâneas deixaram de ser raras e a multidão “assumiu uma nova forma”: é nesse período que começamos a observar revoltas camponesas, torneios, grandes sermões públicos e disputas urbanas entre facções. Foi também nessa época, como aponta Bobrycki, que “surgiram os primeiros sinais de uma nova e violenta perseguição em massa aos judeus da Europa Ocidental”.

Alguns elementos do “regime de multidões” do início da Idade Média sobreviveram. Das assembleias cerimoniais surgiram os parlamentos do final da Idade Média, que evoluíram para os parlamentos que conhecemos hoje. Motivos artísticos do início da Idade Média, mostrando fileiras de anjos ou multidões de espectadores testemunhando milagres, permaneceram comuns em pinturas e na literatura. Bobrycki encerra seu livro com a Primeira Cruzada de 1096-99, na qual mais de cem mil europeus viajaram "como gafanhotos" para a Terra Santa sob a liderança de Pedro, o Eremita. Fruto dos sermões públicos que se tornavam moda na época, foi, escreve Bobrycki, "um dos movimentos de massa mais impressionantes da história mundial".

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